Piscina Entrevista | Alice Yura

Conheci Alice por acaso, na ocasião da exposição GULA, individual da artista Berna Reale em exibição na Galeria Nara Roesler, e na qual ela é retratada em uma das obras (Fome de Leão, 2018). Nos poucos minutos em que conversamos, percebi que ali tinha alguém com um olhar bastante singular. Fiquei muito interessada no que ela tinha a dizer e não me saiu da cabeça a ideia de convidá-la para um café. Alguns dias depois nos encontramos e em pouco menos de duas horas Alice me contou, dentre outras coisas, sobre sua trajetória como artista transgênero no interior, sobre suas influências, sobre visibilidade e inclusão no meio da arte e acima de tudo, sobre o que acredita. Com ajuda da minha amiga e companheira de Piscina, Naly, apresentamos abaixo um resumo desse precioso encontro. - Paula

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Para começar, você poderia falar um pouco da sua formação e trajetória?
Me formei bacharel em artes visuais pela UFMS, e fiz uma especialização em produção em Arte Visuais e Cultura. Tô tentando produzir desde 2010, aquela coisa engatinhando. Não sou uma pessoa que tem uma produção muito frenética, ultimamente a gente tem pensado em produzir arte em cima da rapidez das mídias, rola uma massificação dos conceitos… Isso me cansa um pouco, eu gosto de fazer as coisas com calma. No momento de elaboração de um trabalho, fico muito tempo pensando. Não tenho muitos trabalhos, muito do que eu tenho em arquivo nem considero trabalho, penso como experimentação para testar como uma ideia pode funcionar.
 
E qual a sua pesquisa atual?
Basicamente o que eu pesquiso é a relação entre arte e vida, e a conexão disso ao gênero. Até um pouco óbvio. Às vezes me questiono, sobre a razão pela qual não consigo expandir meu olhar pra outras questões. Mas ao mesmo tempo é uma questão política. Se não eu, quem vai falar disso? Intimidade e política se misturam muito no meu trabalho. Tenho um pensamento muito continuo, muito fluido, e acho que não penso a mesma coisa da mesma forma sempre, apesar de ter a mesma questão por muitos anos.

Como você percebe esse amadurecimento?
Essa conexão entre arte e vida pra mim é tão fundamental porque de onde eu venho, não existe arte contemporânea. No Mato Grosso do Sul (inteiro), só tem um museu de arte contemporânea. Quando penso no meu trabalho não tenho como ignorar a minha origem.
A formação acadêmica foi fundamental pra mim porque só tive acesso a esse tipo de conhecimento na universidade. A minha ambição quando comecei o curso era ser pintora, eu queria pintar coisas belas. Não havia uma preocupação conceitual.
Em 2008, fazendo um trabalho para uma disciplina, eu descobri a performance, ali entendi que meu próprio corpo tinha potência poética e estética. Antes era tudo muito intuitivo, eu não pensava sobre isso artisticamente. Foi a partir dessa tomada de consciência que  comecei a trabalhar mesmo.
E nesse momento a questão do gênero já apareceu. Nessa época eu ainda não tinha feito a transição, e era bastante andrógina. Nos lugares, as pessoas me confundiam e eu entendia que a reação das pessoas era diferente quando me percebiam como menina ou como menino, ou quando ficavam confusas. Dessas percepções surgiram duas instalações com fotos minhas, em uma as pessoas interagiam e formavam novas coisas, na outra havia uma participação mais passiva. O olhar do outro afeta a gente de forma direta. Eu me construí como pessoa e como artista muito a partir da relação direta com o outro. Minha arte não vem do isolamento, da ideia que surge lá no meu quarto. Eu não tenho como ignorar o outro. O preconceito, a violência. Se lá na minha cidade estavam jogando lata em mim e nos meus amigos, esse outro existe e ele intervém.
Apesar da minha vida ter sido do embate, não foi da violência. Eu escolhi o embate intelectual e artístico, produzir algo relevante com isso, pra mim e pra quem está ao meu redor.

A arte que surge da experiência e a potência que ela tem de transformá-la.
A arte pra mim surge assim. Não é aquela coisa de família rica, vernissages, exposições, erudição.A minha arte veio de uma necessidade de me manter como pessoa de forma sóbria. Arte me traz sobriedade. Pensar a realidade através da arte me faz crer que a arte pode subverter as coisas de uma maneira positiva, e torná-las acessíveis.
Artista como gênio me incomoda. O cotidiano é fantástico. É o lugar onde a gente pode sonhar. Não é perfeito, mas é fantástico.

Pensando em tornar acessível, como você usa a internet e as redes sociais para o seu trabalho?
Tem duas coisas, sobre o instagram, por exemplo. Uma é as macrotendências da arte, que pra mim é chato. Todo mundo falando e fazendo coisas parecidas. Eu não sou partidária, eu faço o que eu acredito e ponto final.
A outra é o debate sobre conteúdos relevantes, e isso é legal. Acho importante um pensamento crítico sobre o que você consome no facebook e no instagram (eu não tinha insta até o final de 2017 - fiz por pressão de trabalho). Uso instagram como ferramenta, gosto de pensar no feed, como construir imagens ali. E uso muito para pesquisa. Gosto de ter informações direcionadas, nem sigo muitos amigos.

Saindo um pouco da virtualidade, como você percebe essas espacialidades -  ser artista no interior e em São Paulo?
Também vejo dois lados: por um lado sinto que tenho um pensamento menos tendencioso, menos “contaminado” -  eu não vou pensar o que as pessoas querem que eu pense. Às vezes no circuito fica tudo meio pasteurizado.
Mas trabalho no interior é muito complicado. Se em São Paulo já é difícil, lá é muito pior para uma pessoa trans. Eu gostaria muito de dar oficinas, cursos, etc, para pessoas em vulnerabilidade social. Eu tenho minha família que sempre me apoiou e ainda me apoia, sou muito grata e não esqueço disso - penso em como devolver isso pra sociedade, pra outras pessoas, fazendo o que eu sei fazer.  Em São paulo ainda tem políticas públicas que permitem isso, no interior é muito mais complicado. Eu me ofereci uma vez no CRAS [Centro de Referência de Assistência Social], pensando em estimular as pessoas a pensar e produzir a partir da sua situação, criar a partir disso. E a coordenadora me perguntou se eu não poderia ensinar a pintar pano de prato. Até sei, mas não é o que tenho de melhor pra oferecer.
Lá eu não tenho como trabalhar. Pensar em São Paulo é pensar em trabalho. Eu gostaria de trabalhar diretamente com o público trans, e em cidades menores é um público muito diminuto, ao ponto da invisibilidade mesmo.
Ao mesmo tempo, muitas vezes em São Paulo percebo que tenho mais liberdade com pessoas cis, do que trans. Aqui tem uma resistência.
Por exemplo, as meninas negras terem mais evidência acho correto. Mas eu não sou negra, sou descendente de japoneses e de origem caipira, sou do interior, do Mato Grosso do Sul - um estado que sofre um apagamento cultural. Meu lugar de fala é específico. E não vejo abertura de diálogo, para estabelecer trocas, produzir junto. Eu também não sou ninguém aqui, isso influencia. As pessoas são muito midiáticas.

Como lidar com as dissonâncias dentro de grupos minoritários?
Mesmo dentro das minorias, sinto uma disputa quanto a quem é mais minoria. Já ouvi que sou privilegiada, porque estudei em universidade federal, etc. E por isso não posso falar.
Que transfeminismo é esse? Tem uma cartilha pra ser mulher, pra ser negro, pra ser pobre, e isso impede o diálogo. Dentro das minorias a gente reproduz um autoritarismo da classe dominante - sobre a religião do outro, sobre o corpo do outro etc. Uma pessoa trans religiosa sofre preconceito de outras trans, por exemplo. Se for assim, eu não quero pertencer. A fala tem que ser transformada em contato, em acesso, não em repressão.
A sociedade é segregadora e cruel. A gente não separa pra entender as diferenças, a gente separa pra classificar o que é bom e o que é ruim (e não é por aí que deveria ser).

Mesmo dentro da minoria, ainda é preciso lutar por um espaço. Não pertencendo a um certo circuito de arte consolidado em São Paulo, e encontrando essa resistência entre a comunidade trans aqui mais organizada, como ser ouvida e manter a confiança em si mesma e no seu trabalho?

Muitas vezes é muito difícil e nem sempre me sinto forte suficiente para lidar com o sistema, com egos, etc. Porém, eu tenho uma relação muito profunda e intrínseca com a arte; isso me motiva a continuar mesmo com todos percalços. E, independente do que possa acontecer ou vir a acontecer eu sei o quanto me dedico e quanto minha vida está nos meus trabalhos, então por mais que eu não tenha grandes reconhecimentos ou esteja num nível de prestígios em relação ao que faço, eu sei que faço bem, com verdade e com muito amor. Cada pequeno passo e cada contato aprendo muito, lembro sempre de onde eu venho e dos meus privilégios, busco fazer deles não o que me separa dos outros, mas, um meio de estabelecer diálogos e pontes, como também, uma possibilidade de construir uma outra narrativa que não é a que se espera de uma mulher trans (ainda hoje). Este ano tive o prazer e a honra de participar e colaborar na produção de um trabalho da artista Berna Reale, ela queria abordar a violência contra pessoas trans no Brasil e, me ouviu com muita humildade e sensibilidade, acreditou na minha capacidade de produzir a foto e ser a performer para essa obra (Fome de Leão, 2018 - parte da mostra GULA). Talvez, essa atitude dela sirva de exemplo para tantos outros artistas, produtores e agentes de cultura; nós não somos estampas e caso haja abordagem sobre a questão ou tema trans insira legitimamente pessoas trans no trabalho, isso faz toda diferença. 

E como é possível estabelecer essas pontes?
Acabando com a hipocrisia do discurso. O contra senso e a diferença no mesmo espaço promove o diálogo e isso é fundamental. As pessoas tem que parar de querer ser celebridades, vamos ser gente. Chega de simulacro. Sair da virtualidade. A realidade pertence a todos, e é necessário ouvir o outro. Isso é ter uma vida compartilhada de verdade. Compartilhar na rede é outra coisa, muito mais cômoda.
Menos demagogia dentro dos movimentos sociais, dentro da arte. O momento no Brasil é muito triste, não tem como se isolar.
Esses dias eu estava em uma conversa sobre lugares específicos para pessoas trans. Se eu for num lugar, e minha mãe não puder entrar, meus amigos e amigas não puderem entrar, esse lugar exclusivo, a esse lugar eu não pertenço. E isso não me deslegitima como uma pessoa trans. Eu quero ser uma pessoa trans no mundo. Que tem o respeito e que respeita as pessoas.
Acho que artistas trans na música e no teatro (que são mais populares e acessam mais o público) poderiam também abrir portas para pessoas trans das artes visuais, e não vejo esse movimento.

Como você vê as políticas de inclusão no mundo da arte?
Acho que o tempo vai dizer. Se a inclusão é genuína, ela vai colocar e manter as pessoas em um lugar. O artista negro ou trans vai sumir daqui a um ano? Se o debate esfriar? Mesmo se feito com oportunismo, acho que as pessoas beneficiadas devem ter inteligência e um posicionamento concreto em relação a isso. Se querem me usar pra fazer mídia, eu vou usar o espaço de vocês pra incluir mais gente. Essas pessoas devem ser ativas: exigir minorias na produção, por exemplo. Discurso sem prática é palanque, demagogia. Eu não quero palanque. E quero construir uma base sólida para o meu trabalho, de pertencimento. Para mim e pra outras. É o que tento fazer.
Eu poderia ter vindo pra São Paulo, feito programa, e com essa grana ter financiado uma exposição. Mas eu não quero. Eu tenho direito de recusar esse lugar -não porque não seja digno, mas porque eu não quero.
Às vezes o trabalho de uma artista trans ainda não é o mais maduro, ainda não é o melhor. Mas ninguém começa sendo o melhor, e essas pessoas precisam começar de algum lugar.
Eu acredito que uma menina trans na prostituição pode ter expressão poética. Tem como dizer que o trabalho do Bispo do Rosário (que passou quase a vida toda num hospício) não tem potência? Hoje ele está ai, sabe? Não é só por mim. Quando eu falo em representatividade em museu, por exemplo.

Quais são suas principais referências na arte?
Me dei conta que, intuitivamente, as principais são mulheres.
Yoko Ono, Yayoi Kusama, Orlan, Frida (ela é inegável, como mistura trabalho e vida), Márcia X. tenho visto bastante, e acho porreta. Berna Reale, Adriana Varejão, Rosângela Rennó. Tomi Otahke me emociona muito. Priscila Pessoa, do Mato Grosso do Sul, que foi minha professora e ainda é minha diva.
A Hanna Ahrendt tem essa frase, ela fala que o ser humano é um ser condicionado, e tudo com que ele toma contato acaba se tornando condição de sua existência. E eu sinto muito isso na arte, tudo me toca ou me inspira de alguma forma. Mas as mais notáveis são mulheres mesmo.