Perfil | Angela Od
Conhecemos o trabalho da Angela Od desde o início de 2018, quando recebíamos portfolios de artistas via email. E foi uma alegria poder conhecer o trabalho da Angela, que é bastante instigante, mesmo online.
Mais tarde, em 2019, Angela, que ainda morava no Rio e estava em São Paulo por uns dias, me convidou para uma cerveja e foi assim que nos conhecemos pessoalmente. No final do mesmo ano, convidamos Angela a participar da exposição coletiva Ânima, e foi só então que tive o prazer de ver seu trabalho ao vivo.
Angela Od nasceu em 1973 no Rio de Janeiro e adotou recentemente a capital paulista como residência. Com uma trajetória profissional e artística múltipla, sua pesquisa tem como foco o bordado como construção narrativa, sempre em diálogo com elementos da linguagem digital, seja através das linhas, lãs e tecidos presentes em seus bordados, seja através do pixel, presente em vídeos que se utilizam de computação gráfica. Em seus trabalhos, Angela cria personagens e narrativas epopéicas, com uma referência direta aos games e à sua construção imagética, permeada por fases, trajetos e obstáculos.
Você pode contar um pouco sobre sua formação e trajetória? Como se deu a escolha de trabalhar como artista?
Passei por três faculdades: Arquitetura, Artes Dramáticas e Comunicação Social, esta última finalmente concluí, me formando em jornalismo. Minha paixão era mesmo atuar, mas por questões de pressão familiar acabei desistindo. Assim que me formei fui para a Europa com intenção de morar por lá e acabei ficando na França, fazendo vários tipos de trabalho para pagar as contas, e até trabalhei um pouco na área de comunicação mas acabei me distanciando e desistindo do jornalismo. Já em contato com vídeo e edição desde a faculdade migrei para área do audiovisual como editora e mais tarde vídeo-grafista. Durante esses anos em que trabalhava com computação gráfica comecei a fazer cursos de desenho e técnicas diversas de pintura para auxiliar no processo de criação de animação com desenho manual. Entrei na EAV Parque Lage quando percebi que conseguia desenvolver melhor o trabalho no processo da cor, volume e sombras, e que desenhar não era o suficiente para mim.
Como a sua experiência na EAV Parque Lage acabou por direcionar sua carreira nas artes visuais?
Eu trabalhava com computação gráfica usando os aplicativos para desenho vetorial e composição de imagem e quando tinha animação de personagem eu também fazia tudo pelos aplicativos. A partir disso eu tive vontade de aprender a desenhar para criar personagens através do desenho manual e fazer animação também manual. Comecei com um curso de desenho onde aprendi aquarela, serigrafia, etc. , depois comecei a fazer desenho de modelo vivo, mas percebi nessas oficinas de modelo vivo que eu trabalhava melhor a parte do pós-desenho, que é luz e sombra, volume, aspectos que são mais associados à pintura. Então entrei no na Escola de Artes do Parque Lage para aprender sobre pintura. A partir da vivência lá com outros alunos mais avançados, comecei a me interessar por outros tipos de aula e fui participando de grupos de discussão de pintura, entrei grupos de projeto e isso foi o que me estimulou a ter uma avaliação dos professores com relação à pintura e mais tarde comecei a ser convidada por eles para participar de exposições coletivas. Então acho que foi por aí que começou, foi um a bola de neve.
Qual sua pesquisa atual e que trabalhos você tem desenvolvido nos últimos tempos?
Com o isolamento decorrente da pandemia, passei um bom período em casatrabalhando com bordado e recentemente abri uma chamada no Instagram para que qualquer pessoa me enviasse fotos dentro de alguns padrões estabelecidos feitas durante o período de isolamento social e que pudesse se tornar uma composição interessante para ser transportado para o bordado [imagens abaixo]. Isso fez com que eu enxergasse outros universos e olhares e saísse um pouco do meu próprio olhar. Estou trocando mensagens com as pessoas e elas me contam o que sentem ao fazer as fotos ou o que os objetos retratados representam para elas. Estou adorando trabalhar com um momento congelado cheio de sentido e emoções para cada uma dessas pessoas.
Quais fatos, trabalhos ou experiências mais relevantes contribuíram ou afetaram de alguma forma a sua trajetória?
Primeiramente, acredito que ter estudado/vivido em um internato, instituição de caridade para meninas filhas de mães solteiras foi um fato bem marcante na minha vida. Foi lá onde tive contato pela primeira vez com o bordado, pois à tarde tínhamos que passar cerca de duas horas e meia sentadas bordando em oficinas, separadas por idade e níveis de dificuldade. No momento de escolher uma formação e uma carreira para o meu futuro, tinha tantas dúvidas! Na verdade não era dúvida pois eu queria ser atriz e fiz uma escola profissionalizante e faculdade de Teatro na Uni-Rio, mas como não tive apoio em casa, entrei para a faculdade de arquitetura e logo depois jornalismo. A faculdade de arquitetura me fez experimentar as técnicas básicas de desenho e pintura e me sentir à vontade nesse universo. A faculdade de jornalismo nos anos 90 me ensinou que um bom jornalista devia buscar conhecimento em todas as áreas possíveis e estar bem preparado, com uma cultura diversificada. Acho que é essa a mentalidade de um artista. Isso, de certa forma, me fez ter interesse por muitas coisas que estavam em um mundo distante do meu e contribuiu com o espírito aventureiro que fez ir morar em outro país, com as economias que fiz através de vários empregos durante a faculdade também. Certamente me trouxe uma experiência inusitada o fato de trabalhar em mais de 40 lugares diferentes: de camareira de teatro à garçonete, hostess em boate, recepcionista, repórter, etc.
Achei interessante você mencionar que cada uma das faculdades que você frequentou influenciou de alguma forma a sua prática ou mesmo o seu olhar sobre o mundo e as coisas. Imagino que o mesmo tenha ocorrido com as experiências diversas de trabalho. Alguma experiência profissional ressoou na sua prática?
Não sinto que nenhuma experiência profissional ressoe diretamente na minha prática. Mas talvez esse meu interesse em desenhar pessoas venha desses trabalhos em que eu via muita gente passando. Bom, quando eu trabalhava em boate, na entrada, foi uma época que a gente era muito ligada à moda na faculdade e a gente gostava de se montar e ir estilosa para a boate. Eu observava as pessoas indo porque eu trabalhava em uma boate que era bem vanguarda nos anos 90, meio gótica, a Dr. Smith. Depois, quando eu trabalhei de recepcionista na França, em Paris, eu substituia todas as pessoas que faltavam ao trabalho então eu ficava em vários cargos diferentes e tinha dia que eu ia em duas ou três empresas, onde eu também tinha que lidar com muitas pessoas. Talvez eu tenha observado muita gente.
Quais os trabalhos foram mais marcantes?
Bestiário 1, Bestiário 2 e Bestiário 3. O primeiro porque foi a concretização de um trabalho selecionado em um edital ainda como esboço de um projeto. Os outros também representam hoje a concretização de uma decisão ambiciosa pra mim na época como realizar projetos de uma dimensão com a qual ainda não havia trabalhado, e ir descobrindo ao longo do processo cada passo da execução pra concluir o trabalho exatamente da forma como eu imaginava.
Sobre os Bestiários, do que essas séries tratam e que narrativas presentes estão presentes em cada uma delas?
As séries de Bestiário, começaram em 2016 e se estenderam até ano passado, com a narrativa do Cara da Espada. Eu fazia trabalhos que eram como se fossem fragmentos dessa narrativa dele e eles funcionaram como a demonstração de um trajeto maior, com inicio, meio e fim. Esses trabalho formam caminhos, com obstáculos no meio, como a estrutura de um videogame. É como se você pegasse um mapa por onde a câmera vai passar e mostrar detalhes (tela 1, tela 2, tela 3 - fase 1, fase 2 e fase 3). Nos Bestiários 1, 2 e 3 é como se você acessasse esse mapa completo, um mapa por onde a câmera vai passear. A série tem muito a ver com a computação gráfica e o trajeto de um herói. O trajeto de uma vida está sempre associada ao videogame. Para mim o videogame reflete fragmentos da vida, das dificuldades, da necessidade de vencer, a morte…
Qual a relação do seu trabalho com os games?
Para mim essa relação dos games está associada ao herói, ao trajeto do herói, à saga, essa epopéia. Em segundo lugar, a computação gráfica, a forma como se trabalha em um programa, um software, em que é possível trabalhar com uma câmera que passeia e pode produzir uma grande imagem em que existem vários trajetos e vistas aproximadas de uma câmera como um zoom em trechos desse grande mapa. Os Bestiários 1, 2 e 3 é como se fossem esse mapa expandido por onde é possível mostrar esses detalhes. Então meu trabalho tem a ver com a própria computação gráfica, a capacidade de animar um personagem mas basicamente, tem a ver com a epopéia de um herói, com a tentativa de vencer obstáculos e adversidades. Meu herói é um anti-herói, ele luta meio em vão. Na verdade, os personagens que estão ali com ele também estão lutando e não esperam um herói para vencer a batalha deles.
Quais são suas perspectivas? Como se vê daqui um tempo? Tem algum projeto que deseja realizar mais a longo prazo?
A longo prazo gostaria muito de experimentar outras formas de trabalhar com o fio em grandes dimensões e de forma mais rápida. Também gostaria, a médio prazo, de produzir narrativas através de outros meios como os quadrinhos por exemplo, que já comecei a fazer em parceria com o artista e desenhista João Galera. E por último, também gostaria de voltar a pintar…
Que mulheres (artistas, escritoras, familiares e figuras públicas) foram/são influências e fonte de inspiração?
Marlene Dumas, Elisabeth Payton, Artemisia Gentileschi, Paula Rego, Tracey Amin, Maria Bethânia, Rita Lee, Cate Blanchet, Adriana Varejão, Vivian Cacuri, minha amiga Paula Damazio, grande mulher, que entre outras coisas me ensinou a acreditar em mim mesma e a falar em público, minha amiga Olga Gordo que me levava a milhares de exposições em Paris e com quem tinha conversas maravilhosas sobre arte, filosofia, filmes de Eric Rohmer e passagens interessantes de romances.
O que você faz para se sentir motivada em períodos de baixa/desânimo/bloqueio criativo?
Eu acredito em desânimo como o que vivenciei agora no início da pandemia, mas não acredito em bloqueio criativo. Acho que bloqueio é falta de vontade de trabalhar, e se você não tem vontade de fazer seu trabalho como artista, deveria ir buscar outra coisa. Para mim trabalhar, tem a ver com disciplina, dedicar um tempo a pesquisar, a abrir o projeto e olhar para ele, e pensar, testar, errar e tentar de novo. Tenho projetos e vontades armazenadas para médio e curto prazo, assim, acho impossível não saber o que fazer. O que pode acontecer é uma insatisfação com o trabalho, com a forma que ele foi feito e talvez não gostar do resultado e às vezes dá vontade de não fazer mais e tentar achar outra coisa. Isso pode ser um processo longo, mas ele vai acontecendo enquanto você está trabalhando. Sobre o desânimo, eu respeitei um tempo, mas depois de uns dois meses parada peguei projetos e apenas continuei a fazê-los automaticamente até que isso foi se desdobrando em novos trabalhos que me deixaram muito animada.
Quais foram os maiores desafios enfrentados na sua trajetória até agora?
Estar aberta para aprender e me aperfeiçoar sem me deixar influenciar ou perder a mão do meu trabalho. Já destruí trabalhos após algumas aulas e hoje vejo as fotos deles e acho que me representam do jeito que estavam, e não mudaria nada neles hoje.
Você comentou algumas vezes sobre um desanimo no inicio da pandemia e do isolamento social. Você poderia falar um pouco mais sobre os impactos e desdobramentos desse momento para você nos âmbitos profissional e emocional?
Quando começou o isolamento eu tinha acabado de me mudar, ainda não tinha um ateliê para trabalhar, não tinha nem organizado ainda meu material de trabalho, então não estava conseguindo trabalhar. Além disso, estava preocupada, não teve sp-arte, outras duas exposições que eu iria participar também foram canceladas e foi então que percebi que eu não precisava correr para produzir coisas, que esse ano seria devagar, que não teria exatamente onde mostrar e eu não gosto de produzir trabalho para ficar parado. Gosto que os trabalhos circulem. Então resolvi ter calma, organizar as coisas aos poucos. Demorei um tempo para organizar meu ateliê mas o fato de conseguir improvisar um espaço de trabalho me animou. Primeiro por eu conseguir me sentir bem em casa (fiz muitos tutoriais de como organizar a casa, de como dobrar roupa, etc.) porque eu não estava me sentindo bem com a bagunça e com a situação lá fora.
Mas a sensação que mais me bateu foi de que normalmente somos muito cobrados para insistir em um discurso e manter uma coerência em nosso trabalho pois se começamos a fazer coisas diferentes, teoricamente, as pessoas ficariam perdidas e não entenderiam o que fazemos enquanto artista. E o que me veio nesse momento foi que a história do mundo foi interrompida, o mundo como conhecemos foi interrompido. Então eu me senti mais livre e menos cobrada. Eu achei que esse era o momento que eu tinha para fazer exatamente o que eu tinha vontade, sem cobranças de mim para mim mesma e com uma justificativa, que era esse momento completamente diferente de interiorização, de um mergulho interior e de um mergulho em coisas que, até então, não faziam parte da minha vida, como decoração, bem-estar, casa e até mais tempo com meus animais. Acho que isso aconteceu para todo mundo, é um outro ponto de vista. Me senti livre para iniciar um trabalho totalmente diferente, por mais que ele tenha alguma relação com o que eu já fazia antes, que é essa mistura de linha e pixel.
A chamada que eu fiz no Instagram também tem a ver com o isolamento. Foi uma maneira de me conectar com às historias de outras pessoas, ver o que elas estavam fazendo ou passando. Antes eu iria fotografar as pessoas ou elas viriam aqui mas como esse contato está difícil, pedi para que as pessoas produzirem suas próprias fotos nesse período de pandemia. Então são imagens que têm algum significado para elas, com algum objeto que fez parte desse momento delas.
Como você enxerga seu papel como mulher artista no cenário artístico nacional?
Eu não sei, enxergo hoje meu papel como “mulher”, e não como “artista mulher”. O que mais tem sido latente em mim ultimamente é o amor pelas questões de outras mulheres, vontade de mostrar a elas o quanto eu as entendo e gostaria de ser entendida. Hoje olho para outras mulheres com cumplicidade, e é fundamental que a gente compreenda que nos colocaram num ringue de luta pra se divertirem e nos distraírem com isso. Mas o que acho fundamental é, como mulher, fazer com que enxerguemos em nós mesmas resquícios ou até muito ainda do machismo.
Qual o seu entendimento sobre a necessidade e importância de se ter iniciativas voltadas exclusivamente às mulheres e outros grupos minoritários?
Eu ouvi em um podcast esses dias que esses grupos os quais chamamos minoritários são, na realidade, majoritários, porém minorizados, “majoritários minorizados”. Grupos que, tomando consciência de seu poder em número e capacidade, no futuro não precisarão mais dessas iniciativas. Porém, até esse dia chegar, acredito que hoje essas iniciativas são necessárias.