Projeto Matriz – Clarice Gonçalves
A maternidade é um momento de transformações intensas e irreversíveis na vida de uma mulher. Em uma sociedade na qual ela é ainda, de certa forma, induzida sem que isso represente políticas efetivas para melhorar a vida das mães (e também daquelas que não desejam ser mães), é no mínimo estranho que essa questão não seja mais debatida em todos os campos, entre eles o artístico.
Ao longo da historia da arte é possível identificar algumas artistas que trabalharam essa temática, tais como Louise Bourgeois e a britânica Bobby Baker, como reflexo indissociável de quem elas eram e do que viviam em seu cotidiano, sempre situando suas criações entre o pessoal e político, em busca de um maior reconhecimento do papel da mulher na sociedade.
Nos últimos tempos, com a chamada quarta onda do feminismo, esse tema voltou à pauta, favorecendo o surgimento de iniciativas relacionadas à maternidade e a arte. Entre elas a exposição Birth, com curadoria de Charlotte Jansen.
Aqui na Piscina, iniciamos o debate sobre o tema apresentando o projeto PUERPERIUM, que foi aprofundado na live com suas idealizadoras, Bianca Bernardo e Luisa Callegari. Acrescentando à discussão, hoje apresentamos o Projeto MATRIZ, concebido pela artista Clarice Gonçalves, viabilizado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal (FAC/DF) e que culminou em duas exposições: uma individual com 30 trabalhos inéditos de Clarice e uma coletiva, com trabalhos de 10 artistas mulheres, em sua maioria mães, selecionadas em uma chamada aberta e que puderam desenvolver suas pesquisas em um ateliê coletivo mediado pela artista.
A exposição MATRIZ, esteve em exibição de outubro a novembro de 2019 no Museu Nacional da República, em Brasília. Composta por 40 obras, dentre elas telas, instalações e objetos, a exposição tinha como objetivo mostrar um lado da maternidade pouco abordado, menos idealizado e mais pautado nas experiências reais e autobiográficas das artistas participantes: Adriane Oliveira, Aila Beatriz, Angélica Nunes, Bárbara Moreira, Camila Melo, Carolina de Souza, Débora Mazloum, Marta Mencarini, Raissa Miah, Tatiana Reis.
Sob diversas óticas, a temática da maternidade esteve presente ao longo dos 15 anos de carreira artística de Clarice Gonçalves. Mas foi ao tornar-se mãe que a artista pode perceber a "crueza” presente na experiência, que para ela, foi impossível se preparar. Conversamos com Clarice via áudios de Whatsapp e destacamos aqui os detalhes dessa conversa:
O projeto MATRIZ resultou em não só uma, mas duas exposições. Como se deu esse processo?
Foram duas exposições concomitantes, no mesmo espaço. A minha exposição já estava pronta e pensada mas quando rolou o edital do FAC, quis ampliar esse espaço. A maternidade foi e continua sendo um dos maiores desafios da minha existência, principalmente nesse contexto social em que vivemos. Então quis trazer não só a reflexão pictórica e material a respeito disso, mas também de fazer algo que eu gostaria de ter recebido enquanto mãe artista, um espaço que eu gostaria de ter usufruído, um espaço de acolhimento para essas mães artistas. Então incluí no cronograma do edital, para que antes da exposição, acontecesse um ateliê coletivo para mulheres, preferencialmente mães, porque essa cobrança da maternidade não afeta não afeta só quem é mãe, mas todas as mulheres pois todas somos socializadas para maternar em algum momento.
É um projeto que contempla três etapas: a minha exposição individual, que teve curadoria da Cinara Barbosa e, paralelamente, o ateliê coletivo. Conseguimos o espaço do anexo do museu criamos uma brinquedoteca improvisada com algumas cuidadoras, para cuidarem das crianças enquanto as mães estavam no ateliê. Essa para mim era uma grande questão pois para conseguir criar durante o puerpério, e depois também, eu precisava saber que meu filho estava bem, que estava sendo bem cuidado, então foi muito legal poder proporcionar isso. Ainda assim, tinham várias flutuações de presença, pois cada mãe tem uma demanda diferente, vem de um contexto social diferente, e mora em uma região diferente de Brasília. Então a gente teve que adequar esse acompanhamento a essas realidades. Tinham mães com bebes recém nascidos, outras com crianças maiores, com mais de um, com apoio, sem apoio.
A ideia é era proporcionar esse espaço para criação e fazer esse convite para que essas artistas pudessem olhar para esse lugar que é ainda um tabu. Praticamente não existe uma reflexão imagética sobre a maternidade, porque existe esse tabu de que as artistas que viraram mães, se voltarem ao mercado, a serem produtivas, vão produzir obras inferiores, de temáticas menores, que seria a tal da “baby art”. Existe esse estereótipo como se tudo fosse girar em torno dessa estética romântica da maternidade.
Meu convite foi para que tentássemos olhar para a maternidade real, não romantizada, a partir das nossas vivências, trazendo os nossos backgrounds para esse espaço do ateliê como espaço de criação coletivo. A gente dava pitacos nos trabalhos umas das outras, tinha ali uma espécie de tutoria. Esse ateliê durou algumas semanas e a partir dessas produções, fiz uma curadoria do trabalho delas para fazer uma mostra paralela e contígua à minha exposição no museu.
Como surgiu a ideia de criar essa chamada aberta para mães artistas? Como funcionou?
O coletivo foi uma experiência com 10 artistas, 11 comigo. E a ideia de fazer uma chamada aberta era conhecer quem eram essas artistas mulheres, quem eram essas artistas mulheres mães que se identificavam com esse chamado de olhar para esse lugar, para falar sobre a maternidade sem condicionamentos sociais e sem o castigo de não poder falar o que se sente realmente sobre a maternidade.
Coloquei essa chamada aberta dentro do projeto contemplado pelo edital do FAC. Fizemos a divulgação, eu dei preferencia para artistas mulheres mães, ou seja, mulheres sem filhos também podiam participar mas demos preferência para mulheres mães, que é uma condição bem específica e bem desprotegida e desvalorizada. Elas tiveram um pró-labore de 600 reais para custear o trabalho e o transporte, tiveram o espaço do ateliê e o cuidado com as crias, que foi essencial para que elas pudessem estar focadas e tranquilas para criar, sabendo que as crianças estavam sendo bem cuidadas, se divertindo.
Foi interessante que as crianças também criaram uma relação com o museu, algumas pedem até hoje para ir para o museu trabalhar, porque começaram a ver o museu como um lugar divertido e eu acho que isso muda também a forma como eles crescem vendo a arte. De poder ver a arte realmente como lugar de trabalho, que é levado a sério, que tem visibilidade, que tem prestigio. E o fato de trazer essas produções para esse espaço de visibilidade, de colocá-las do lado do meu trabalho – que já tenho 15 anos de carreira, de mercado e de mostras – foi a minha forma de coroar essa pesquisa, de mostrar para a sociedade: olha, é isso aqui que vocês não querem ver e isso pode ter muita qualidade, independente de qualquer outra coisa.
Como foi essa troca com outras artista e mães? O que mais te marcou dessa experiência?
A experiência com essas artistas mães foi incrível, superou as minhas expectativas em quesitos humanos, aprendi muito, fiquei muito tocada de ver os relatos, as partilhas delas e de como muito do que elas viviam é muito parecido com o que eu vivi e com o que eu tentava comunicar, justamente por causa desse ideário social de que a maternidade é uma coisa inata, é um dom, uma coisa que você não pode reclamar porque é divino. Você não se sente no direito de sentir, de exprimir seus sentimentos, de achar ruim, de se admitir exausta e admitir que você detesta fazer aquilo. E essa é a base da nossa economia, o trabalho reprodutivo doméstico não remunerado. Então foi bom sentir ecoar essas vozes. Em algum momento eu senti que a gente estava passando por um processo de constelação, era como se a gente estivesse constelando a maternidade na sociedade. Foi muito forte. Cada uma trazia coisas de sua vivência, coisas muito poderosas, teve choro, teve risada, teve somatização. Foi bem diverso e lindo.
Qual foi o ponto em comum que você pôde observar entre as participantes no que diz respeito às dificuldades que elas encontraram para continuar suas práticas artísticas após se tornarem mães?
O ponto em comum que eu vi em todas as participantes e eu inclusa, foi essa sensação de silenciamento ao trazer as reflexões que a gente estava trazendo sobre as nossas vivências, a nossa maternidade então de uma forma sutil mas quase generalizada, a gente sentia um certo desinteresse do meio artístico, das pessoas em volta, das famílias, por mais apoio que estivesse dando, sempre há esse lugar de não escuta, de não empatia com as mães, que você não pode desabafar, você não pode falar que está cansada, que você queria estar fazendo outra coisa, isso é mal visto. Então a gente sentiu isso em comum, muito forte.
Você pode contar um pouco sobre a sua experiência com a maternidade e como isso influenciou a sua produção?
Minha experiência com a maternidade foi muito chocante. Meu trabalho sempre orbitou o feminino, a construção do feminino, a socialização da mulher. Acho que o primeiro trabalho que eu fiz, por volta de 2005 ou 2006, eram umas fotografias da minha mãe grávida da minha irmã. Então ali eu já estava falando da maternidade e dessa socialização para a maternidade. Até então, eu estava falando sobre esses temas de um lugar de quem está observando, de fora. Por mais que eu estivesse ali segurando a onda, ajudando em casa, porque enfim, minha mãe não teve a participação do pai da minha irmã, eu também não fui criada com o meu pai. Viemos de uma linhagem de mães solteiras e isso era muito forte e muito eloquente de alguma forma, no contexto sócio econômico e sócio cultural que a gente nasceu. Então a maternidade me trouxe essa coisa crua de que não adianta se preparar. Por mais que eu tivesse lido coisas da psicologia, da antropologia, e da própria medicina baseada em evidência , nada me preparou realmente para o que eu estava vivendo. Foi muito chocante. A minha maternidade também teve um contexto diferenciado porque meu filho nasceu com uma má formação e isso gerou toda uma tensão e traumas para além do puerpério, que já é bem complexo.
Então foi bem chocante para mim não conseguir produzir, não conseguir dar continuidade ao meu raciocínio, à minha criação. Mentalmente eu já não via sentido no que eu produzia antes. Eu tentava resgatar o que eu estava fazendo antes, era como se a outra Clarice tivesse morrido. E na verdade, é isso que acontece, a gente morre. A pessoa que a gente é e que achava que ia ser, morre quando a gente vira mãe. A gente tem que se reinventar e a gente renasce de outra forma. E eu passei muito tempo tentando resgatar aquela outra Clarice e isso me gerou muita dor. Então a partir do momento que eu consegui ressignificar e ver que é isso mesmo, que é pra sempre, foi que as coisas começaram a sair de mim para virar obra. Minhas obras adquiriram mais do que nunca um caráter catártico. E até hoje acho que a maternidade me fez rever prioridades, me trazer a visão de que o autocuidado é essencial e me fez condensar a minha produção. Eu tenho menos tempo para criar, menos tempo de ócio, de descanso, de tempo pra mim, então o tempo de criar diminui muito e é difícil de aceitar e se adaptar a isso. Mas a gente precisa aceitar as mudanças e o trabalho se também se adapta de alguma forma.
Como tem sido a percepção disso no contexto da quarentena?
Agora na quarentena está sendo como se eu estivesse revivendo o puerpério, porque isolamento social é super o que acontece com as mães, a gente fica isolada socialmente por anos. Porque enfim, a gente vive em uma sociedade que não acolhe crianças, não acolhe mães. Você pode até sair com o seu filho, mas que ele não chore, que ele não incomode, que ele não faça barulho. Então já somos empurradas para o isolamento social quando viramos mães. Na quarentena, além do isolamento social, ficamos com as crias em casa 24h, tendo que ser tudo, então estou revisitando algumas questões, alguns processos. Haja trabalho interno para dar conta!
Quais foram as respostas e os desdobramentos da exposição?
Outro aspecto que esqueci de mencionar foi que durante o período da exposição, a gente teve uma mediação, para poder fazer essa apresentação e introduzir as pessoas na temática da maternidade. Pelo relato dos mediadores, 99% das pessoas saíram muito comovidas da exposição, ao ponto de buscá-los para conversar, para desabafar, teve gente que chegou a dizer que as obras funcionaram como uma espécie de cura.
Teve um policial militar que viu a exposição e disse que ficou muito emocionado, e disse que se alguém não saísse emocionado, era porque não tinha coração. Então foi muito especial ver essa reverberação nesse espaço no coração de Brasilia.
No segundo andar do mesmo museu, estava acontecendo uma exposição militar sobre aviação, então tinha toda essa energia patriarcal, masculina e bélica em volta da gente. Mesmo durante o ateliê coletivo, tinham vários momentos que a gente olhava pra fora e tinha centenas de PMs, marchando. Tinha uma tensão que ressaltava a importância de estar nesse lugar nesse momento, trazendo essa energia. E acredito que esse lugar da maternidade, da sacralização romântica da maternidade, de alguma forma, protegeu a gente, porque a exposição poderia ter sido facilmente censurada, mas milagrosamente não foi.
É uma exposição que reverberou muito em todo mundo que participou e viu. Porque é isso, todo mundo vem de uma mãe, e a gente nunca pára para pensar na mãe como ser humano, como um individuo que tem sonhos, que tem vontades, que tem desejos, que tem uma individualidade que é pautada quase que obrigatoriamente para poder fazer esse sagrado ofício, o sacrifício de trazer alguém para o mundo. Foi muito bonito ver isso.
A partir disso tudo, foi formado o coletivo MATRIZ, com as artistas que participaram do ateliê e que continua ativo no Instagram. Agora estamos trabalhando uma linguagem de intervenção urbana com lambes. Fiz duas artes usando aquela imagem da Anna Bella Geiger que tem as mulheres falando “burocracia”, onde eu inseri a palavra “puerpério”. E a gente saiu colando em alguns pontos da cidade, na medida do possível. E agora no Instagram começamos relatos sobre a maternidade na quarentena.
Eu fiquei muito feliz com a reverberação desse projeto, dessa exposição e do coletivo, e também no campo coletivo da humanidade, de ver que as mães estão conseguindo cavar esse lugar de fala, de se colocar, de se mostrar na sua realidade, não só na romantização.