Perfil | Tássia Bianchini
É bom poder retornar às entrevistas após o hiato de alguns meses. E para marcar esta volta, a primeira entrevista de 2021 é com a Tássia Bianchini, artista que acompanhamos já há algum tempo. A Tássia é uma dessas pessoas cuja dedicação transparece em todos os meios em que atua e acompanhar seu trabalho é acompanhar uma trajetória em constante movimento, uma estimulante busca pela expressão de si e da percepção do mundo a sua volta.
Tássia Bianchini nasceu em 1988, em Jales, no interior de São Paulo e depois de cursar Desenho Industrial na Universidade Federal do Paraná, em Curitiba, mudou-se para Amsterdã, na Holanda, onde vive. Com uma pesquisa voltada ao expressionismo abstrato, à memória e à materialidade, sua prática combina literatura, pintura e fotografia, desenvolvendo-se em torno de temas como linguagem, expressão, corpo, movimento, memória, tempo e espaço. As temáticas são exploradas com foco em dicotomias e contrastes tais como natureza e cidade, ação e contenção, matéria e espírito, silêncio e comunicação, macho e fêmea, humano e não humano.
Na entrevista abaixo Tássia nos conta sobre detalhes sobre sua prática, suas principais inspirações e desafios.
Você pode contar um pouco sobre sua formação e trajetória? Como se deu a escolha de trabalhar como artista?
Eu aprendi a pintar e desenhar quando eu era criança, com a minha mãe que sempre trabalhou com pintura e cresci com isso. Mas quando era criança nem passava pela minha cabeça ser artista ou escritora. Eu achava que fosse estudar engenharia ou algo assim, que foi o que realmente comecei a fazer, mas bem rápido vi que não era pra mim e fui estudar Design de Produto. Durante a faculdade tive aulas de fotografia, que tinham um carácter mais experimental, e foi aí que retomei a experimentação artística com outras mídias. Comprei uma câmera e comecei a fotografar. Pouco tempo depois eu entrei em contato com o trabalho do Gerhard Richter, que é um pintor alemão contemporâneo que trabalha com expressionismo abstrato de uma forma nova, usando a tinta quase como um material de construção, trabalhando transposição de camadas. Isso me tocou de um jeito que eu tive que encontrar alguma forma de expressar aquilo que senti vendo aquelas pinturas. E foi aí que comecei a experimentar com a tinta a óleo de novo e desenvolver a minha própria linguagem. Desde então minha trajetória tem evoluído de forma muito orgânica. Eu não tinha pretensão nenhuma de ser artista plástica, mas a prática cresceu tanto em mim que isso foi inevitável, assim como tudo que se seguiu disso, tendo uma crescente audiência online e offline, eu comecei a me aprofundar cada vez mais nas minhas linhas de pesquisa e me desenvolver como artista e pesquisadora, e vim estudar Artes Visuais e Literatura em um mestrado experimental aqui na Holanda.
Quais os maiores impactos e desdobramentos que sua mudança do Brasil para a Holanda ocasionou no seu trabalho? Pensa em retornar ao Brasil um dia ou sente que já criou raízes por aí?
Eu acho que ter vindo morar no exterior me ajudou muito a desenvolver meu trabalho, a mudar, a expandir minhas perspectivas de vida, trabalho e arte. Antes de vir pra cá eu fui fazer uma residência artística na Irlanda que foi o gatilho que me fez querer viajar mais e morar fora. Eu acredito que ter me confrontado com outras visões de arte e sobre o meu trabalho, foi fundamental pro meu crescimento e aprendizado. Mas nem tudo são flores, ir morar fora também cria um distanciamento bem grande das nossas raízes, principalmente quando a gente vai sozinha como eu vim. E esse distanciamento é muito necessário até no começo pra gente ter espaço para se redescobrir e explorar coisas novas, mas pra mim sempre tem sido muito importante lembrar de onde venho e manter as minhas origens bem vivas em mim, eu acho que só assim eu posso ser realmente autêntica com meu trabalho.
Eu sempre retorno ao Brasil porque as minhas raízes são daí, mas sempre para passar um tempo só, ver a família e os amigos, fazer projetos, descansar, ir pra praia, passar um tempo na natureza para me recarregar, mas morar de novo no Brasil, eu sinceramente não sei. Por enquanto não tenho planos de morar aí, meus projetos e planos estão me levando a outros lugares. E também não sei se vou ficar na Holanda para sempre. Aqui virou a minha base com certeza, mas eu sempre fui um pouco nômade e planejo morar em vários outros países ainda. Tem muito do mundo que ainda quero conhecer.
Qual sua pesquisa atual e que trabalhos você tem desenvolvido nos últimos tempos?
As principais linhas de pesquisa que guiam meus projetos estão relacionadas à materialidade e ao Expressionismo abstrato na pintura, ferramentas de expressão e memória corporal relacionados à ação do corpo na construção de imagens e na expressão visual, mais especificamente sobre a ação de desenhar ou pintar em si e a relação do corpo e da memória nessas atividades.
Outros temas que eu tenho trabalhado em projetos de literatura e fotografia principalmente, são a mitologia e a simbologia da natureza aplicadas ao desenvolvimento da psique e aos nossos ambientes internos. No momento estou com um projeto maior de literatura que aborda temas relacionados a psicologia, memória, construção do ser, e meio ambiente, no sentido de explorar o que é a psique humana a partir de metáforas relacionadas ao meio ambiente.
Outros ensaios em que estou trabalhando abordam temas como o silêncio como mídia locativa – Silence as locative media, poéticas de igualdade feminina com um ensaio chamado To dignify every flower in the field, sustentabilidade em projetos de fotografia e alguns ensaios literários e desenvolvimento de linguagem visual na pintura seguindo a linha do meu projeto Primitive Needs.
Você poderia contar um pouco mais sobre seu trabalho com fotografia? Qual a conexão, o fio que conecta seus trabalhos nessas diferentes frentes?
A fotografia foi onde eu comecei a pesquisar temas artisticamente, e acabou virando uma ferramenta muito importante que perpassa todos os ramos e mídias do meu trabalho. Eu comecei a estudar fotografia durante a faculdade e tinha que fazer projetos sobre certos temas e para isso costumava sair para andar pela cidade buscando cenas ou coisas para fotografar. Depois fui estudando plantas com a fotografia em estúdio. Quando eu fui integrando a pintura na minha prática, a fotografia tomou um lado mais de pesquisa, onde o sair e andar para fotografar se tornou uma forma de meditação e de estudo de um assunto/sentimento relacionado a algum dos temas nos quais trabalho, enquanto a pintura e a escrita abrangem outros aspectos, às vezes até sobre o mesmo tema.
E em relação ao fio que conecta as diferentes mídias eu ainda estou tentando entender, para ser sincera. Uma das linhas de pesquisa que eu segui no mestrado aqui e ainda estou realizando é justamente sobre a intersecção de mídias, não em termos de material, mas em termos de função, ação e conteúdo. Por exemplo, pra mim a minha prática com pintura está muito mais ligada à dança, à escultura, à fotografia e à escrita do que à pintura em si, por ser tão enraizada na experiência corporal, na precisão de um momento, e pelo aspecto linguístico que sempre me guiou na pintura, usando-a como uma forma de linguagem. A escrita para mim é uma atividade mais pictórica e performática. E a fotografia está muito ligada à escrita, e carrega uma coisa de ‘ser anônima’ que eu amo e é extremamente essencial para o meu trabalho – anônima no sentido de não ser sobre mim, de não ter um senso de importância sobre quem sou, mas sim de ter leveza e liberdade.
Quais fatos, trabalhos ou experiências mais relevantes/marcantes contribuíram ou afetaram de alguma forma a sua trajetória?
Para mim, meu desenvolvimento como artista plástica anda em paralelo com meu desenvolvimento como pessoa e com meu entendimento de mundo e de mim mesma. Acredito que os fatos que mais afetaram a minha posição como artista são muito pessoais para eu compartilhar, mas as coisas que eu acredito que me ajudaram muito a crescer foi não ter medo de me arriscar e ouvir minha intuição. As loucuras às vezes nos levam a outros entendimentos e expandem a nossa visão, e nos levam para fora da nossa zona de conforto. Eu acho que ter viajado sempre me ajudou a crescer muito como artista, não ter medo de entrar em contato com pessoas que admiro o trabalho, ir visitá-las, tentar entender a visão, expor a minha, perguntar quando não sei e ser questionada. Ter estudado aqui em Amsterdam também me ajudou muito a expandir minha visão, ter mais clareza sobre o meu trabalho e fortalecer meu posicionamento.
Quais são suas perspectivas como artista? Como se vê daqui um tempo? Tem algum projeto que deseja realizar mais a longo prazo?
Eu sempre tenho mil projetos que quero realizar a longo prazo. Agora eu estou numa fase de alinhamento da minha visão e prática artística e estou direcionando os meus projetos, possibilidades e práticas de forma que me dêem espaço e reflexão para esse alinhamento. Além disso, eu estou trabalhando em um livro que devo publicar em um ano. E quero escrever muitos outros no futuro. Também tenho focado bastante em preparar exposições para quando o lockdown amenizar. E também em criar formas de trabalho e comercialização que dêem mais estabilidade para o futuro, para que eu possa investir mais no meu trabalho e crescer como artista. No momento eu acho importante ser flexível em relação a planos de futuro, porque ano passado ensinou muito que o futuro pode ter muitas surpresas e que às vezes é necessário deixar as coisas em aberto, seguir o fluxo natural das coisas e confiar em si mesmo.
Que mulheres (artistas, escritoras, familiares e figuras públicas) foram/são influências e fonte de inspiração?
Tem algumas artistas visuais que eu admiro muito e nas quais encontro inspiração e reflexão sobre a minha própria prática, como Donna Huanca, Adriana Varejão, Helena Almeida e Helen Frankenthaler. Escritoras como Clarice Lispector, Ayn Rand, Lyn Hejinian, Luce Irigaray, Anais Nin e Hannah Arendt também sempre me inspiraram e foram uma grande fonte de conteúdo. E mais próximas de mim, todas as mulheres da minha família sempre me inspiraram muito por serem muito fortes, independentes, muito conectadas à natureza e autônomas. Minha mãe, minha irmã, minhas tias, minhas avós e as minhas amigas, sempre me deram muito apoio e me inspiraram a me arriscar e não ter medo de ser mulher.
O que você faz para se motivar em períodos de baixa/desânimo/bloqueio criativo?
É muito raro eu sentir que tenho um bloqueio criativo, o que gosto de fazer normalmente para limpar a mente e me preparar pra pintar é preparar os materiais e telas e limpar o estúdio. As vezes passo dias montando as telas, preparando com gesso. Isso me dá espaço para não pensar em nada e começar a criar espaço para pintar em seguida. E o que gosto de fazer também para lidar com qualquer bloqueio de forma geral e me sentir mais conectada comigo mesma é Yoga! Desde estilos mais passivos até Ashtanga que é a minha prática diária. Eu faço a alguns anos e adoro. Fazer qualquer tipo de atividade que exija muito do corpo me ajuda a me animar e abre espaço na minha mente. Quando eu era pequena era ballet e hoje, Yoga. Quero também aprender escalada, adoro ir para o mato e fazer hikes. E principalmente me sentir em contato com a natureza – talvez essa seja a principal coisa que me inspira. É onde eu me sinto em casa, relaxo, respiro, e volto para mim.
Quais foram os maiores desafios enfrentados na sua trajetória até agora?
Conciliar o lado financeiro do artístico, apesar de me sentir muito bem e tranquila tendo feito isso por muitos anos, os altos e baixos podem ser bem difíceis e a instabilidade que isso traz também. E um desafio que começou a ficar mais claro pra mim mais recentemente é o de encarar a diferença de gênero do mundo das artes. Apesar de ter enfrentado poucas situações onde isso aconteceu de fato, elas foram bem claras e me abriram os olhos para como algumas pessoas ainda lidam com a representatividade.
Como você enxerga o papel de sua atuação como mulher artista no cenário artístico atual?
Eu acredito que o meu papel como mulher artista, independente das temáticas com as quais trabalho, é o de libertar, dar força e não aceitar limitações, tanto a mim quanto a qualquer outra mulher artista ou não. Algumas de nós trabalham com empoderamento feminino como temática, mas eu acredito que conteúdo e posição artística são interligados, mas independentes.
Eu trabalho mais com o feminismo em textos, e a expressão verbal é muito mais suscetível a uma leitura direta. Mas como pintora que trabalha com Expressionismo abstrato eu me vejo em uma piscina de homens, onde apesar de várias artistas mulheres que foram grandes figuras e determinantes em diversos aspectos do expressionism abstrato, muitas vezes ainda sou questionada por ser uma mulher tão jovem fazendo esse tipo de trabalho, mesmo aqui na Holanda, um país tão mais igualitário em relação a gêneros que o Brasil. Sinto que ter que encarar desigualdades só me dá gás pra fazer mais e ser mais radical no meu posicionamento e trabalho!
Quais foram os impactos e desdobramentos da pandemia para você nos âmbitos profissional e emocional?
A pandemia me forçou a ser mais flexível e adaptável, e também a ter calma e não me desesperar. No começo da pandemia houve muito medo por instabilidade financeira, o que realmente não tem sido fácil, mas esse ano já senti bem mais movimento nesse sentido. Mas no geral eu acho difícil comentar sobre isso já, porque sinto que ainda estamos passando pela pandemia, ao menos aqui. Aqui na Holanda o lockdown tem sido relativamente tranquilo, mas ainda está rolando. E apesar de eu ter tido que fazer várias mudanças e adaptações, pra mim, períodos de solidão e quietude são sempre bem vindos.
Qual o seu entendimento sobre a necessidade e importância de se ter iniciativas voltadas exclusivamente às mulheres e outros grupos minoritários?
Acredito que iniciativas voltadas a grupos com desigualdade de representatividade é super importante tanto para todos os lados constituintes de uma sociedade. Tanto no sentido de garantir mais espaço, reconhecimento e oportunidades a mulheres e outros grupos minoritários, assim como construir um contexto artístico mais fundado na realidade, diverso, expansivo, que fala a uma audiência muito maior de pessoas. Eu penso que as criações artísticas, quaisquer que sejam, são os pilares culturais de uma sociedade, que extravasam muito além do ‘mundo da arte’, e têm o papel de desenhar e ressignificar a nossa realidade. Toda manifestação artística é um reflexo direto do que está acontecendo na sociedade, seja abordando temas políticos ou não.