Perfil | Gabriela Monteiro

É sempre uma alegria dar continuidade aos perfis de artista aqui na Piscina e hoje temos o prazer de compartilhar uma entrevista com a artista Gabriela Monteiro. Conhecemos a Gabriela na ocasião do do Mergulhos da Piscina, evento que realizamos em novembro de 2019 e no qual convidamos coletivos, dentre eles o Trovoa, do qual a Gabi faz parte, para debatermos as possibilidades de se atuar em rede. A partir daí, passamos a acompanhar o trabalho da artista pelas redes, mas como esse contato acaba sendo superficial, a convidamos para esta entrevista, para que pudéssemos saber mais sobre sua trajetória, seus projetos e perspectivas futuras.

Gabriela Monteiro nasceu em 1996 na Zona norte de São Paulo, onde vive e trabalha ainda hoje. Segundo a artista, é nesse local onde encontra mais inspiração para seus trabalhos. "As idas e vindas dentro da periferia contribuíram muito com meu processo artístico, por isso escolhi continuar vivendo aqui.” Através de pinturas e esculturas, a artista explora temas relacionados às suas próprias vivências e reflexões buscando sempre uma conexão com a história de seus ancestrais. 

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Você pode contar um pouco sobre sua formação e trajetória? Como se deu a escolha de trabalhar como artista? 
Eu sempre fui muito imersa em artes e processos criativos. Vim de uma família cristã e quando adolescente, eu frequentava muitos museus porque era onde meus pais deixavam eu ir. Então tive contato com as artes desde os meus 12 anos. 

Mas sempre tive muito interesse em política e discutir os processos de construção da sociedade, então entrei na vida acadêmica cursando Economia. Não dei continuidade por questões emocionais muito intensas, e elas me levaram a dar um giro de 360 na minha vida e ter mais contato com meu lado criativo. E aí comecei a ter contato com moda e passei a conhecer mais o universo da arte. Essa conexão com a moda me fez começar a produzir colagem com tecidos, depois fazia colagem com tecidos e pintava essas telas. Comecei a ficar muito fissurada em texturas e cores vibrantes. Fui entendendo que essas texturas desenhavam caminhos e linguagens que traduziam muito minha trajetória. Então me dei conta que a arte era um caminho possível para traduzir minhas questões de vida e foi assim que comecei. 

Teve alguma experiência na sua infância que você acredita que se relacione com o que você produz hoje como artista?
Acho que não tive uma experiência única que tenha me impactado.

Cresci na periferia, com arquiteturas inacabadas, vendo muito terreno baldio, casas em construção, pixação e acredito que essas referências imagéticas têm uma grande influência no que produzo.
— Gabriela Monteiro

Foi daí que fui desenvolvendo meu traço e construindo minhas esculturas, foi através dessas referências visuais que via todos os dias que fui construindo o que tenho hoje enquanto produção. Sinto que o que produzo se aproxima bastante desses lugares, eles estão presentes no meu trabalho.

Qual sua pesquisa atual e que trabalhos você tem desenvolvido nos últimos tempos? 
Eu sempre pesquisei bastante sobre arte africana e latina. Me reconheci artisticamente quando fiquei mais imersa nas produções desses territórios. E fui criando uma conexão maior com minha ancestralidade, me deparando com formas e padrões feitos nesses lugares, olhar para essas produções e enxergar similaridades com o que produzia inconscientemente fez com que eu realmente me encontrasse e me valorizasse mais enquanto artista.

Então, falar da minha pesquisa é falar das minhas descobertas com a minha ancestralidade e falar da minha ancestralidade é falar dos caminhos e trajetórias que meus antecessores fizeram e que eu tento refazer hoje em dia, buscando chegar nessa gênesis e começo de tudo. Meu trabalho é uma busca. Tento materializar e traduzir essas histórias e trajetos difusos, e conectá-los com meus sentimentos, com a minha vida no presente. É uma busca sem término. 
— Gabriela Monteiro

Nos últimos tempos tenho visto essas formas amadurecerem. Antes tudo que eu fazia estava estritamente ligado a esse imaginário que eu ia construindo, hoje consigo desdobrar e conectar essas formas às minhas emoções e sensações. 

Que fatores e características presentes no seu trabalho hoje evidenciam essa mudança de uma produção ligada ao imaginário para uma produção que vem do desdobramento de emoções e sensações?
Acredito que uma das características, por exemplo, são as cores. Comecei a usar a cor amarela, que é bem distante dos tons avermelhados que sempre usei, ela representa felicidade, é uma cor solar e estar num momento de mais abertura para o mundo, para os afetos e para o amor, me influenciou a trazer essa cor para as minhas produções. Ela combinada às cores que eu já usava, acendeu um pouco mais essa expressão das emoções. 

Outro fator que tenho observado e me aprofundado, é que comecei a mergulhar muito em querer saber o que é o amor, sua importância, o modo como a humanidade lida com os afetos, como ele atravessa mulheres negras, como lidamos com nossos sentimentos… Sinto que minha produção começou a acompanhar isso. Antes eu me via numa pesquisa mais direcionada à minha ancestralidade e para falar sobre ancestralidade eu precisava imaginar para conseguir expressar.

Hoje, além da minha ancestralidade, quero falar do que sinto, quero dar vida ao que eu vejo sobre o amor, quero fazer da expressão dos meus sentidos algo mais divertido. E continuar na aceitação de que existe muita intensidade nas coisas que sinto e a arte é minha extensão, é o local que também posso direcionar meus sentidos.
— Gabriela Monteiro
Gabriela Monteiro Sem título, 2019 gesso e tinta acrilica  dimensões variáveis

Gabriela Monteiro
Sem título, 2019
gesso e tinta acrilica
dimensões variáveis

Quais fatos, trabalhos ou experiências mais relevantes/marcantes contribuíram ou afetaram de alguma forma a sua trajetória? 
Logo quando comecei a produzir, fiz minha primeira viagem para a Bahia, lugar de onde meu pai e sua família vieram. Depois decidi fazer o trajeto de ônibus porque queria saber como foi esse translado da minha família para São Paulo. Essa experiência agregou muito à minha narrativa e à busca para entender essas trajetórias. Comecei a criar desenhos durante o processo de inconsciência (naquele estado quando estamos quase dormindo) e me vi muito mais confiante sobre as minhas buscas. Fiz a Escola Entrópica no Tomie Ohtake e isso mudou completamente minha autoestima enquanto artista, comecei a botar mais fé e coragem no que eu estava fazendo porque outros olhares sobre minhas produções possibilitaram esse amadurecimento. 

E todos meus processos emocionais contribuem muito para minha produção, eu só consigo produzir em situações intensas, sejam elas boas ou ruins. 

Você mencionou essas trocas que aconteceram durante a Escola Entrópica no Tomie Ohtake. Como se deu esse processo e o que dessas trocas você enxerga como tendo uma influência direta com a sua produção hoje?
As aulas tinham uma dinâmica legal de troca entre quem ministrava as aulas e es artistas que participavam. Meus amigues que já tinham feito me recomendaram e achei que seria bom ter contato com um processo como esse. Essas trocas fizeram com que eu amadurecesse a visão que eu mesma tinha sobre meu trabalho. Antes era eu mesma analisando tudo, entendendo processos e etc. e ter pessoas em volta ouvindo sobre meus processos e ajudando a explorar mais outros pontos me fizeram ter mais segurança sobre minhas narrativas. Isso me ajudou a trazer outros materiais para a minha prática e não ter medo de arriscar durante meus processos.

Fiquei curiosa para saber mais também sobre essa viagem da Bahia para São Paulo. O que mais te marcou nesse trajeto? E esses desenhos que você começou a criar nesse estado de inconsciência pré-sono? Têm relação com essa viagem ou foi algo que veio depois?
Já fui diversas vezes, mas escolher fazer a viagem por via terrestre me fez experimentar o melhor desse processo, que é a demora. Passei muito tempo ali e saquei que não poderia existir pressa, que esse caminho me colocou em contato com coisas que eu só poderia ver ali, naquele momento. Me senti dentro do infinito e isso me marcou. E trajetos se fazem assim, sem pressa. O melhor é a demora, é nela que você vê com calma a vida passar. 

Os desenhos tem bastante relação com isso e vieram logo após esse processo. Descobri que dormir e acordar viajando, dava muito lugar ao sonho e à imaginação. Então fui tentando desdobrar isso desenhando. 

Gabriela Monteiro Caminho secreto tinta acrílica, 2019 crayon e linha sobre tela de algodão e tela de nylon  140x170 com

Gabriela Monteiro
Caminho secreto tinta acrílica, 2019
crayon e linha sobre tela de algodão e tela de nylon
140x170 com

 Quais são suas perspectivas como artista? Como se vê daqui um tempo? Tem algum projeto que deseja realizar mais a longo prazo? 
Eu tenho perspectivas bem duras. Apesar da coragem e insistência, não consigo ter uma perspectiva de viver apenas disso, se eu escolhesse viver só disso, passaria fome. É muito duro, mas é a realidade de muitos artistas dissidentes na América Latina. Essa falta de valorização e suporte não me deixam ter perspectivas muito positivas. Mas acredito muito no movimento de pessoas que vêm hackeando esse território da arte e possibilitando que sejamos vistos. Se ainda continuo produzindo arte é porque as pessoas que eu mais acredito e me inspiram continuam produzindo e vencendo. 

Que mulheres (artistas, escritoras, familiares e figuras públicas) foram/são influências e fonte de inspiração?
As mulheres das aldeias Soninké que pintam seus muros me inspiram muito. Citando alguns nomes: Kristine Tsala (Camarões); Laís Amaral (Brasil); Rebeca Carapiá (Brasil); Theresa Chromati (EUA); Anastasia Pather (África do Sul); Ana Clara Tito (Brasil). Minha mãe Marcia Monteiro e minha amiga e artista querida Julliana Araújo

O que você faz para se motivar em períodos de baixa/desânimo/bloqueio criativo? 
Eu me esforço para ser generosa. Acho que generosidade com a gente em momentos difíceis é transformador. E eu não me forço a produzir, já passei longos períodos sem produzir e entendi que o segredo é não ter pressa. Me conectar com a filosofia Bantu-Kongo, que traz vários ensinamentos sobre o tempo, me ajudou a encarar esses períodos difíceis por outro prisma e a aprender a não ter pressa. 

Gabriela Monteiro Série de azulejos, 2021 15x15 cm

Gabriela Monteiro
Série de azulejos, 2021
15x15 cm

Você mencionou que só produz em momentos de intensidade, seja ela positiva ou negativa. Como essa carga de intensidade é transposta na sua produção?
Através da linguagem, exagero dos traços e de informações visuais, uso de tons mais aberto ou fechados. Na escultura trabalho o peso, tento criar coisas mais pesadas e viscerais. E em outros momentos, crio coisas menores, mais leves e com traços mais bem definidos.

Quais foram os maiores desafios enfrentados na sua trajetória até agora? 
Falta de estrutura para produzir é minha maior dificuldade. Estou sempre tentando nadar contra essa maré. É bem desanimador conviver com isso, queria não ter que escolher entre pagar minhas contas ou comprar material. 

Como você enxerga o papel da sua atuação como mulher artista no cenário artístico atual? 
O Trovoa, coletivo que participo, me estimula muito a ir em frente enquanto artista, é um movimento muito potente e que possibilitou minha continuidade. Com isso, vejo minha atuação em conjunto a esse movimento muito importante, sobretudo para artistes negres, indígenas e de norte a sul. Porque juntes temos transformado muitas coisas. Eu sou porque nós somos, não poderia ter feito nada do que já fiz e desenvolvi na arte brasileira se não tivesse outras comigo. 

Quais foram os impactos e desdobramentos da pandemia para você nos âmbitos profissional e emocional?

A pandemia foi um momento para descobrir mais sobre meus extremos. Lidar melhor com o tempo. Respeitar meus limites. Ser mais generosa com minhas questões emocionais. Não mantenho tudo isso sob controle sempre, mas aprendi a ter outros olhares sobre mim e consequentemente sobre outres.

Gabriela Monteiro Sem título, 2018 gesso e tinta acrílica

Gabriela Monteiro
Sem título, 2018
gesso e tinta acrílica

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