Georama é um globo oco, no qual a superfície terrestre é representada como uma esfera côncava. No século XIX, os georamas constituíam atrações para curiosos e observadores, convidados a perceber esta tal superfície a partir de outra perspectiva. Nesta seleção de trabalhos, reunimos poéticas de artistas que constroem e revelam seus próprios instrumentos de alteração da percepção do mundo físico e da paisagem que nos circunda: em sua maioria, os trabalhos lidam com o deslocamento – físico ou não – e que implica em entendermos uma temporalidade que ultrapassa a escala da vida humana no planeta. Além das pessoas, e também com elas, a matéria está em constante movimento, se sobrepondo, se cruzando, e permitindo a criação de novas paisagens e identidades.
No deslocamento, devemos atentar também para o local do qual parte o movimento (afinal, quando focado puramente no local de destino, a palavra não seria mais deslocar, e sim colocar). Atentar implica considerar que, como nos aponta Maria Lugones, "às vezes não se trata de até onde se move, mas de como se move, dentro de que complexidades e contra que simplificações de histórias, geografias e significados”. Ao refletirmos sobre os caminhos do deslocar-se, propomos, neste pequeno recorte expográfico, uma perspectiva na qual não há corpo estranho e, em vez disso, tudo é paisagem – o que se extrai, o que se ergue e o que transita entre diferentes tempos e espaços.
Logo será noite é o título de uma série de trabalhos de Leka Mendes inspirada no livro de Eratóstenes, Mitologia do firmamento – Catasterismo. O catasterismo é o ato de transformar qualquer ser, animado ou inanimado, em estrela/constelação, com o objetivo de eternizá-lo no firmamento. A série é permeada pela ideia de contiguidade entre o céu e terra, ancorada na ideia de Emanuele Coccia de que “tudo sobre a terra é apenas a forma e a expressão do céu”.Logo será noite (Terra plana) é composto por tecido, fragmentos de rochas e detritos da atividade humana, e parte de uma representação ideal da paisagem celeste e da impossibilidade de capturarmos o presente no tempo astrofísico. Nossas imagens do céu são sempre imagens do passado e é na rocha, que compõe a superfície terrestre, que nos encontramos, no presente, com esta longa duração que nos escapa às mãos e à memória.
Em Piquenique Sangrento, nos deparamos com uma espécie de rio vermelho, que serpenteia, e transborda dentro do espaço pictórico da pintura. Ao fundo, vê-se uma tentativa de horizonte, interrompida por este fluxo que se expande e por alguns objetos de impossível identificação. Neste trabalho, Mecozzi explora a ambiguidade entre as paisagens externas e internas: estamos, novamente, sem entender a escala dos fenômenos capturados pela artista. O título, porém, nos permite criar uma possível narrativa para a cena retratada, na qual as águas do rio podem ser sangue e, ao mesmo tempo, guardar a memória das dobras e fendas de uma toalha de piquenique estendida no chão. Essa é uma das leituras possíveis, já que a artista se interessa pela relação entre imagem e palavra, e pelos múltiplos sentidos que podem emergir desta.
Na performance Entropia, dois corpos encaram-se frontalmente. O primeiro coloca-se sobre um monte de terra, e o segundo, sobre o monte de areia. Ao iniciarem um movimento de caminhada, eles levam consigo os diferentes materiais, que se misturam e permanecem como rastros no espaço. A topografia dos montes é alterada pelo gesto e diluem-se as fronteiras materiais entre os territórios. Há um processo quase erosivo, que resulta numa paisagem quase aplainada. Este encontro é uma metáfora para o papel da ação humana na constituição da paisagem e na transformação da natureza.
Ora se assemelhando a panoramas do horizonte, ora ganhando forma de mapas topográficos, na série Mancha Limítrofe, Romulo Barros trabalha com as margens. O foco nestas pinturas, que misturam pigmentos em pastel seco, acrílica e guache sobre papel, está naquilo que não é: no espaço entre um corpo e outro, na fluidez com que dois lados se movem e se acompanham, mas sem jamais se encontrarem. Ao dirigir atenção para o que não é um lado nem outro, se evidencia o quanto as margens são, por si só, espaços próprios. As formas orgânicas de Mancha Limítrofe, um pouco rio e um pouco montanha, tem margens curvilíneas e desenham um percurso que carrega a fluidez das correntes de água: Romulo nasceu onde nasce o Rio São Francisco.
A conquista e dominação de territórios, nesta obra, se desenha em duas esferas: na representação das terras (e águas) brasileiras, colonizadas, mas também na corrida espacial representada na obra pela lua Europa, um dos satélites de Júpiter, descoberto por Galileu Galilei em 1516 e nomeado em homenagem ao continente que tanto se empenhava em marcar territórios até no espaço.
A obra, intitulada Europa, interliga com um triângulo de aço três imagens de força simbólica: à lua de Júpiter se conectam representações dos heróis nacionais brasileiros, Zumbi dos Palmares e Yemanjá. Pororocas, palavra que dá nome à série, tem origem tupi guarani e se refere a turbulência formada pelo encontro de águas.
No texto, lê-se:
“Europa é lua em Júpiter
A juventude aparente,
a suavidade da superfície,
Enganam quem tenta alcançar.
Sua crosta de gelo intransponível
só se abre se.”
Os conhecimentos do invisível da espiritualidade e da ciência são parte de uma longa pesquisa da artista.
After Forest, título desta série de Andrea Acosta, poderia ser traduzido para o português como Pós-floresta. As obras desta série são formadas a partir de fragmentos de paisagens transpostas para azulejos através de impressão digital. Placas de espelho se unem aos azulejos formando cubos que replicam, ampliam e distorcem as imagens.
Estes objetos, que parecem de micro escala quando comparados aos cenários que retratam, acabam por encapsular uma imensidão dentro de si. Com mais cara de pixel do que de mata, nestes pequenos universos até as paisagens mais ásperas e acidentadas se revelam frágeis e temporárias. Preocupações a respeito da devastação e preservação do ambiente ganham, em After Forest, um espaço lúdico.
“Por vias artificiais a paisagem pode desaparecer, por exemplo, pela ação das mineradoras que criam sulcos nos relevos pela ambição do lucro, o que gera muitas vezes um saldo de mortes. Já o desaparecimento natural se dá pela própria condição dos nossos olhos que conseguem ver somente até uma certa extensão de quilômetros, depois a imagem entra num degradê de azuis que afirma para os nossos olhos o limite do visível, e entre o mais claro tom de azul e o branco, a paisagem desaparece.” – Luana Vitra em artigo para a Cama.
A jornada de Andrea Acosta em Rehearsals for a transforming landscape [Ensaios para transformar a paisagem], partiu da experiência de explorar um território sem acesso físico a ele. Através de imagens de satélite, Andrea buscava rastros de vegetação pela grande mina de carvão a céu aberto de Hambach, na Alemanha.
A exploração da artista busca rastros de resiliência: pedaços de verde que tenham resistido, ou transgredido a paisagem, renascendo dos escombros. A agência humana na exploração deste espaço é trazida à tona, e Andrea questiona o que é que pode ser reconstruído: “o que estas plantas nos ensinam sobre a resiliência de um espaço que, mesmo quando tentamos simplificá-lo, volta-se a nós como uma infinidade de complexidades e conexões muito além do esperado?”
Rehearsals for a transforming landscape parte da observação e vira uma intervenção, na qual camadas são acumuladas, sobrepostas e erguidas com o apoio de grampos de construção civil e formando camadas que lembram planejamentos arquitetônicos. Fragmentos de destruição e construção dão forma à ensaios para novas paisagens.
Luana Vitra disseca, em Objeto Paisagem, serras e morros e, nesta operação, traz à tona suas camadas estratigráficas. Para esta estratigrafia, a artista se utiliza de materiais comuns à construção civil e que são procedentes da natureza. Neste gesto poético, revela-se que a paisagem é também casa e, a partir dela é que construímos nosso referencial de mundo. Em um olhar atento às camadas que organizam-se diante de nossos olhos, percebemos indícios do desaparecimento de elementos da paisagem, acelerados pelos violentos processos antrópicos extrativistas. A casa, assim como a paisagem, estão em risco e a artista nos aponta para esta possível perda. Não está em jogo, para Vitra, somente a dimensão física daquilo que nos cerca, mas a percepção humana e a reinterpretação e reconstrução dos espaços que nos circundam a partir de uma perspectiva sensorial ou política.
Holoceno é o termo geológico utilizado para designar o período que se estende de 12 ou 10 mil anos – quando terminaram os efeitos da última glaciação – até a contemporaneidade. Neste período, as condições climáticas permitiram o desenvolvimento do ser humano e sua expansão pela superfície terrestre. Desde 1995, cientistas propõem que utilizemos o termo Antropoceno para designar o contexto atual, no qual as atividades humanas se tornaram a principal causa da escalada global da mudança ambiental. Antropocênicas, de Leka Mendes, tem como ponto de partida os efeitos das atividades humanas na transformação da paisagem. A artista se utiliza de detritos da construção civil e de descartes plásticos para carimbar a superfície do algodão cru, criando composições que, muitas vezes, nos lembram pequenas cidadelas. Tais cidadelas se espraiam por toda superfície do tecido e, em alguns momentos, erguem-se em meio a estrelas e satélites que orbitam no entorno do planeta Terra. Cria-se uma certa contiguidade entre paisagem humana (e urbana) e o céu, que pode ser lida como uma espécie de síntese do Antropoceno, no qual a ‘queda do céu’, anunciada por David Kopenawa e por outras cosmogonias indígenas, faz-se iminente.
T Rex Cabazon integra a série de trabalhos intitulada Pós-revelado (2014 -). A série parte de fotografias feitas por Leka Mendes - ou encontradas por ela na internet - de museus de história natural, zoológicos, aquários e parques artificiais. Tais imagens são equalizadas em preto-e-branco, impressas e submetidas a uma espécie de simulação do processo de revelação fotográfica, no qual se substitui composto químico revelador por tinta acrílica. Acumulam-se, nestas imagens, diversas camadas de tinta que atuam como agentes de suspensão do tempo ao serem adicionados à artificialidade dos ambientes retratados. As imagens, em si mesmas, tornam-se relíquias do passado ou de algum futuro distópico, no qual a ação humana modifica e espolia a paisagem de sua dinâmica natural.
Na série Volver a ser Piedra [Voltar a ser Pedra], desenvolvida este ano, Andrea Acosta dá continuidade a sua exploração do fator humano no processo de transformação da paisagem. A fotografia macro do fragmento de construção é finalizada com desenho em lápis sobre impressão digital em papel, reforçando a textura da superfície com minuciosidade.
No processo, a artista transforma novamente em pedra o que um dia foi extraído enquanto minério, separado, processado, e usado para construir outras estruturas. Dois materiais, então reunidos, passam a compor um só corpo, e retornam a uma forma orgânica aleatória que mais conversa com suas origens do que com sua suposta função.
Paisagem é um conceito utilizado para designar um fragmento do espaço geográfico que pode ser identificado e interpretado por meio de nossos sentidos. Ela é alterada de acordo com aquele que olha para o espaço e pela sobreposição de tempos nele contida. Nesta seleção de trabalhos de Paloma Mecozzi, a artista traz à tona a ambiguidade e a impossibilidade de separar a paisagem interna e externa. O sujeito que olha e recorta o fragmento do mundo é o mesmo que o retrata na pintura. O lugar mais íntimo, a cama, confunde-se com os mares de morros, e, em uma cadeia rochosa, nós identificamos algo que se parece com um ovo. A escala garante este jogo entre interno e externo: não há um referente objetivo, mas uma tentativa de transformar a pintura em um espaço absoluto, ou em um mundo em si mesmo.
Ìgbáradì fun Ìwé kíkà é um livro didático que, dedicado a ensinar iorubá às crianças, não contempla palavra alguma. Ana Hupe encontrou o livro, datado de 1980, num sebo na cidade de Ejigbo, no Estado de Osun, na Nigéria. Nas palavras da própria artista, “aprender a ler o mundo antes de ler as palavras, como já ensinava Paulo Freire, é prática da gramática iorubá.”
Na obra, as páginas do livro, transferidas para a madeira, renovam o tempo que este material (e suas imagens) devem durar e propõem um novo formato com o qual se relacionar com ele, onde o próprio conceito de conhecimento e de estudo pode ser repensado. As páginas se desdobram agora de uma outra forma e, do ensino que o livro propunha, se faz um monumento que se sustenta por si só.
“Cuba tem uma relação ambígua com a arte e as leituras, tudo o que é publicado é financiado pelo Estado, uma benção, mas também uma forma de controle. As publicações não são, portanto, tão abundantes e não é incomum encontrar umas muito antigas e bem cuidadas. Nas caminhadas por Miramar, encontrei Biografía de una isla, na varanda de uma casa-livraria. O prefácio do livro é sobre um homem indígena que acorda depois de 500 anos na vitrine de um museu no centro de Havana e começa a analisar as mudanças desde o colonialismo. É uma ficção especulativa que termina com a frase ‘Y desapareció’. Transferi as páginas deste prefácio e continuei a história adicionando imagens da santera Raiza, que visitei muitas vezes em sua casa no subúrbio da cidade de Havana. Ela veste o traje de gala, que só é permitido usar em duas ocasiões: no renascimento (na iniciação à Santería) e na morte. Mas ela queria tanto me mostrar como era lindo que ela acabou pedindo à vizinha o traje dela emprestado e botou para eu ver. Então dançou até desaparecer.” – Ana Hupe
“Quais serão os fósseis de mim que serão encontrados?” Em Tempo, Território, Corrente, Romulo explora as possibilidades do que, de si, pode vir a ser preservado enquanto legado. Em placas de cimento que fazem alusão a lápides, forma-se a reivindicação do que manter permanente no espaço e, portanto, carregado através dos tempos.
Na série, Romulo também fossifica sementes de pau-brasil, uma cabaça, um cobertor de feltro e uma corrente: todos materiais e símbolos que permeiam sua produção mais amplamente, e que acabam por desempenhar o papel de múltiplas representações de si próprias. Nesta peça, uma pérola de água doce ocupa um espaço desproporcional em meio ao cimento. O círculo, de sua própria forma, demarca seu território com certa rigidez. O material, orgânico, delicado e precioso, construído por um mecanismo de defesa natural (o da ostra que reveste o corpo invasor), se contrasta com a rusticidade do cimento, material inorgânico da construção humana, fadado a perseverar em qualquer paisagem. Há em ambos os materiais, porém, um certo rigor em comum.