Ateliê #3 | Luisa Callegari

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Por Paula Plee

Conheci a Luisa rapidamente quando visitava o ateliê aberto na Pivô. Não demorou muito para que nos encontrássemos novamente em outras situações. Quase sempre acompanhada da Aurora, sua filha, a artista visita com frequência exposições, peças de teatro, palestras e outros eventos culturais da cidade. Ainda em 2018, visitei seu ateliê durante um dia em que este estava aberto ao público, mas retornei no início de 2019 para fotografar e conversar com mais calma.

Com apenas 24 anos, Luisa tem no currículo exposições nacionais e internacionais, além de um mestrado recém começado. Formada em Artes Visuais pela Universidade Santa Marcelina em 2015, sua obra em constante desenvolvimento é fruto de experimentações com diversas técnicas e materiais.

Para além do rosa, cor que elegeu como marca e ponto de partida para o seu trabalho,  sua produção se debruça sobre questões de gênero, corpo, sexualidade, maternidade e contradições do universo feminino. As questões presentes em suas obras são escancaradas de maneira ácida e visceral e ganham corpo através da apropriação de objetos que ora se deslocam de seus contextos, ora são cobertos com tinta – modificando a sua percepção e conceitos inerentes à sua forma –, ou ainda através da criação de esculturas que remetem a partes do corpo humano dilaceradas ou por vezes deformadas.

A entrevista abaixo é uma mescla de perguntas respondidas por email em 2018 com alguns pontos da conversa realizada em seu ateliê, já em 2019:

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Você pode contar um pouco sobre você? Onde você nasceu, onde cresceu, quantos anos tem e contar um pouco sobre a sua trajetória, como começou seu interesse pela arte, se teve algum episódio determinante na infância ou adolescência, etc.

Nasci em São Paulo, cresci em São Paulo e vivo em São Paulo. Isso faz de mim uma convicta paulistana - com os lados bons e ruins! Bebo 'um chopps com dois pastel', acho que se tem fila é por que é bom e sou meio workaholic.

Surpreendentemente, sempre soube que queria trabalhar com arte. Estudei em escolas que valorizavam essa área e tive professoras maravilhosas quando criança que me motivaram bastante a seguir essa carreira.

Passei a vida ouvindo as pessoas tentarem me convencer a ir para alguma área correlata "mais segura". "Por que você não estuda arquitetura?" "Moda, design, cinema...." Quando chegou a hora não pensei duas vezes antes de escolher o curso de Artes Visuais que fiz na Faculdade Santa Marcelina.

De fato, a vida como artista não é nada estável ou fácil, as vezes tenho meus medos, mas acho que mesmo em uma "profissão segura" teria uns friozinhos na barriga, né?


O que você tem desenvolvido atualmente na sua pesquisa? E como você chegou até aqui?

Meus trabalhos refletem diretamente minha vida e meus anseios. Sou uma mulher vivendo numa sociedade machista e mãe de uma menina de quase 2 anos. Minha pesquisa transita por assuntos como corpo, construções de gênero, clichês e contradições do universo feminino, sexualidade e maternidade.

Eu não seria capaz de falar sobre um assunto que não me dissesse respeito. Acabo usando minhas experiências para construir questionamentos e me posicionar sobre assuntos que me incomodam.

Você pode contar um pouco sobre as últimas exposições das quais participou (A 50 Nuances de Rose, por exemplo)? Como se deu o convite para participar e como foi o processo? A obra foi comissionada especialmente para a ocasião? Pode falar um pouco sobre ela?

O ano de 2018 foi ótimo nessa área de exposições. Participei ao todo de onze: algumas no Brasil, duas na França, uma nos Estados Unidos e uma na Inglaterra. No final de 2018 estive em Paris para a 50 Nuances de Rose a convite do artista e curador Kévin Bideaux para essa coletiva com vários artistas que trabalham com a cor rosa.

Ele conheceu meu trabalho através do Instagram (acho muito legal pensar sobre como a internet e redes sociais são poderosas nesse sentido) e quando rolou o projeto me mandou um convite! Como a distância era grande (e a verba limitada, rs) inicialmente eu iria participar com um vídeo, mas achei que era uma excelente desculpa para conhecer Paris e acabamos trocando para um trabalho maior, que eu levaria comigo. Conversando com ele sobre minha produção mais recente decidimos por um trabalho que eu ainda não tinha concluído na época que foi o Coroa uma escultura de arame farpado pintada em vários tons de rosa.

É um trabalho que faz muito sentido dentro dos assuntos com os quais trabalho e tem bem presente minha constante busca por dualidades. O arame é cortante, usado para proteger propriedades urbanas ou limitar acesso de animais em propriedades rurais. É uma barreira agressiva. Quando pintado de rosa ele perde grande parte de sua agressividade, criando a sensação de que, talvez, nem te corte se você colocar a mão.


Tem algum trabalho específico que gostaria de realizar (ou técnica que gostaria de explorar) e que ainda não aconteceu?

Muitos! Estou constantemente me inscrevendo em salões, projetos e editais. As vezes eu entro, mas muitas vezes não. Invento trabalhos para exposições e projetos específicos que acabam sendo deixados para trás depois de alguns "nãos". Um recente que tem partido meu coração por não fazer se trata de um grande amontoado de frutas e legumes pintados de rosa (expandindo a ideia do meu trabalho Natureza Morta Tropical), com um corpo de tecido, fibra de poliéster, poliuretano, bonecas e outras coisinhas mais, que seria colocado bem em cima da pilha do chão. A ideia seria abordar a mutação dos corpos, putrefação e a dualidade entre natural e plástico. (Alou alou leitores desta entrevista! Quer bancar ou me ceder espaço para fazer esse trabalho? Me liguem! kkk)

Além dos projetos específicos, estou me interessando demais por explorar a construção de corpos com gesso. Esse já tem acontecido aos poucos e estou bem animada com os desdobramentos.

Quais as suas fontes de inspiração?

Eu trabalho com assuntos que estão presentes na minha vida. Nesse sentido, viver é uma enorme e constante fonte de inspiração. Eu não passo dez dias sem ir à alguma exposição, participo de um grupo de estudos onde os artistas levam suas produções recentes e gasto muito mais horas do que deveria na internet, principalmente no Instagram, onde acompanho o trabalho de outros artistas.

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Como a maternidade influenciou sua pesquisa, seu processo criativo?

Antes mesmo de me tornar mãe eu já tinha muito forte na minha produção a relação com o feminino. Com a maternidade isso se intensificou e percebo que tenho me focado mais no corpo. Um corpo que gera um corpo. Amamentação foi uma coisa muito marcante para mim e acabei trazendo os seios para meu trabalho com mais força.

A vida com uma criança pequena é muito intensa e corrida e a maternidade alterou totalmente meus horários. Hoje tenho um tempo mais restrito de ateliê, mas isso acaba fazendo com que eu aproveite mais cada segundo. Procuro manter uma rotina fixa e trabalho sempre que posso. Também faz parte do meu fazer artístico frequentar museus, exposições, conversas e cursos e nessas situações busco incluir minha filha.

Como você lida com o seu trabalho em termos de autocrítica? Se você costuma ser dura consigo mesma?

Eu produzo muito. Estou sempre fazendo coisas e mais coisas. Às vezes não dá muito certo. Quando não fico feliz com um resultado costumo deixar o trabalho num canto e volto para ele mais tarde. Acabo reaproveitando trabalhos "mal sucedidos" como base para coisas novas. Não tenho muitas crises em relação aos trabalhos em si.

As vezes me abalo quando não consigo entrar para uma exposição para o qual me inscrevi, mas nada muito sério. Tem muita gente fazendo coisas legais e não ser aceita também faz parte.

Como você percebe a questão de gênero na arte atualmente? Sente algum avanço?

Acredito que a sociedade tem prestado cada vez mais atenção às pautas e questões feministas. Percebo diversas instituições apostando nesses temas e um grande número de coletivos e mulheres se reunindo para criarem juntas algo maior. Parece que o mundo se encaminha para uma mudança, mas tenho um grande pé atrás sobre o quanto essas "mudanças" vão permanecer depois que a moda da inclusão passar. Eu realmente não acho que dure. Acho que as pessoas que não eram excluídas antes não vão deixar. As pessoas não reconhecem que são privilegiadas por estarem onde estão e para elas é difícil ceder espaço.

Produzindo em um país cujas tensões se encontram à flor da pele, como se dá para você a relação entre arte e política?

Eu acredito que viver é político. Me posiciono claramente na minha vida pessoal e no meu trabalho. Gosto de arte que assume posição (apesar de saber que também existe um espaço à ser ocupado por outro tipo de trabalhos e que não se posicionar também é assumir uma posição). Considero as linguagens artísticas capazes de comunicar e tratar assuntos delicados e tabus que dificilmente seriam tratados em outras situações e advogo em favor de usar esse potencial por completo.

Parece que vivemos um momento em que se contrapõe uma espécie de apatia com um desejo de ação, mudança. Como a ideia de inércia x movimento afeta o seu trabalho?

De maneira geral, eu tendo a ver as questões políticas mais como um impulso do que como um bloqueio. Uso estas questões e faço mais coisas. Essa história do azul e rosa (polêmica envolvendo a Ministra Damares Alves que afirmou em um discurso que “menino veste azul, menina veste rosa”), para mim torna ainda mais importante fazer o que estou fazendo. Porque é diferente quando as pessoas dizem esse tipo de coisa em voz alta. Muita gente pensa assim, mas se torna ainda mais perigoso quando as pessoas acham que elas podem falar os absurdos que elas pensam em voz alta, sem achar que é um problema.

Então acho que faz sentido o que estou fazendo, pintar tudo de rosa, inclusive coisas que não “deveriam” ser rosas.

É muito louco porque as pessoas acham que gosto muito de rosa e para mim, é bem claro que não é um rosa ‘fofinho’. Talvez eu devesse tentar fazer isso ficar mais evidente, que não é um rosa porque eu sou menina e gosto de rosa, muito pelo contrário.

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Como mulheres artistas, o que pode ser feito?

Acho que é importante estar junto, construir junto. Porque as pessoas que estão no alto da pirâmide agora vão morrer ou sumir. Não tem como mudar radicalmente as coisas agora, mas podemos influenciar como elas serão no futuro. Construir relações positivas e tentar imaginar que logo as pessoas que estarão no alto, serão pessoas legais e que irão fazer as coisas de uma maneira menos perversa. Uma estratégia é tentar chegar no alto e ser uma dessas pessoas influentes. Eu estou fazendo mestrado porque quero dar aula na faculdade e a maneira que eu pretendo dar essa aula, vai ser diferente das aulas que eu tive. Eu tive muito professor que não queria dividir, que tinha medo de perder o lugar, que não queria ajudar. Então acho importante essa ideia de estar junto, construir junto. De focar mais em colaborar, do que em competir. E se você for uma pessoa que está em uma posição de poder, ser capaz de olhar quem está ficando para trás. Porque a gente só avança quando alguém que está na frente ajuda a gente. O lance é não ser egoísta e querer o mundo todo para você, porque o mundo é muito grande.

Como artista, qual tipo de apoio você acha importante receber?

O apoio das pessoas próximas e família é fundamental. Preciso constantemente investir tempo e dinheiro e o retorno é incerto. Acho que os prêmios e editais para exposições com auxilio financeiro são fundamentais. Ainda não consegui me posicionar dentro do mercado e sistema de arte, então sou dependente dessas iniciativas.

Qual o melhor conselho que já recebeu sobre ser artista, e qual você daria?

São tantas coisas... Acho que um conselho muito bom que ouvi é para não se pressionar para fazer trabalhos que "pareçam com você mesmo". Rola uma pressão do sistema para isso, mas é muito mais produtivo deixar as coisas fluírem. Você é você mesmo e não precisa se esforçar para fingir que é.

Outro que achei muito importante foi um que meu orientador da faculdade me deu em uma visita recente no meu ateliê: procurar seus amigos. Encontrar quem são as pessoas que estão fazendo coisas parecidas com você e se aproximar delas, tentar construir junto. Foi assim que surgiram os movimentos e correntes artísticas... Picasso e Braque poderiam ter seguido caminhos muito diferentes se não tivessem se conhecido.

Além disso, um conselho que eu dou para todo mundo é aproveitar as ferramentas do mundo contemporâneo e divulgar seu trabalho no instagram e afins. Bato muito nessa tecla, acho que não faz sentido fugir disso! Vivemos no mundo das aparências e as relações são superficiais: isso pode ser um problemão, mas na hora de divulgar o trabalho, é ótimo.

Como é sua rotina de trabalho?

Me esforço para manter uma rotina indo para o ateliê todas as tardes, mas às vezes o trabalho acontece em outros lugares ou horários também. Quando chega o final de semana e eu vou para um museu é como se eu continuasse trabalhando. Não consigo imaginar o que seria minha vida sem criar.

Como você se vê trabalhando daqui para frente? Quais suas perspectivas futuras?

Pretendo continuar trabalhando nesse ritmo frenético que tem sido minha vida. Para mim a arte não acontece sozinha e sinto a necessidade de estar sempre fazendo alguma coisa nova. Espero que continue tendo cada vez mais oportunidades de expor meu trabalho, tenho planos para tentar alguma residência num futuro próximo e ano que vem (2019) eu começo um mestrado na Unesp.

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