Perfil | Brisa Noronha
No Perfil desta semana, apresentamos o trabalho da artista mineira Brisa Noronha. Brisa nasceu em Belo Horizonte em 1990 e atualmente reside em São Paulo. Conhecemos a Brisa em 2019 em uma visita ao seu ateliê e mais tarde, ela foi uma das artistas convidadas que integraram a mostra coletiva Ânima, que organizamos no final do mesmo ano.
Na entrevista abaixo, a artista nos conta sobre os pontos-chave de sua trajetória artística, sobre o desenvolvimento de sua pesquisa atual sobre seus anseios para o futuro.
Você pode contar um pouco sobre sua formação e trajetória? Como se deu a escolha de trabalhar como artista?
Como artista exploro diversas mídias e materiais, como cerâmica, porcelana, desenhos, pintura, vídeo e fotografia, por exemplo. Comecei a trabalhar como modelo aos 15 anos de idade e aos 18 anos, em 2008, aproveitei as oportunidades que essa profissão oferece para morar fora do país e pude conhecer diversos países e culturas. Sempre me interessei por arte, frequentava muitos museus e exposições, escrevia, relacionava as coisas que me interessavam, pesquisava bastante. Tudo muito livremente, mas fui formando um repertório…Em 2012 voltei para o Brasil para estudar em São Paulo. Primeiro ingressei no curso de Jornalismo (PUC) e um ano depois, quando percebi que não era o que buscava, ingressei na faculdade de Artes Visuais (FASM). Aí tive certeza que queria trabalhar como artista, e sempre penso em como demorei pra perceber isso… Acabei concluindo os dois Bacharelados ao mesmo tempo, em 2015, e isso foi fundamental, pois a interdisciplinaridade me interessa muito. Apesar de nunca ter trabalhado como jornalista, essa formação me é muito útil no trabalho como artista.
Qual sua pesquisa atual e que trabalhos você tem desenvolvido nos últimos tempos?
Vejo meu trabalho como uma pesquisa sobre delicadeza e sobre ordens instáveis. E também sobre as relações que estabeleço com os materiais nesse percurso. As vezes começo pelo material em sí, as vezes começo por um assunto ou proposição a ser desenvolvida e a matéria vai inserindo sua importância no processo, ou até mesmo se tornando o assunto… Ultimamente tenho feito desenhos e pinturas a partir de projetos imaginários para objetos e instalações e a partir da observação de ambientes e utensílios dotados de afetividade. Descobri no desenho um recurso para vencer desafios técnicos que a escultura impõe, no desenho as coisas não quebram, não caem, não tem gravidade. Uso esses desenhos como referencial para investigar a natureza da pintura e do próprio desenho, testando o comportamento de diferentes tipos de tinta sobre diferentes tipos de superfície. Tenho feito pinturas a óleo sobre porcelana sem esmalte, por exemplo. A partir disso desdobro esses trabalhos bidimensionais em esculturas, isso vai adicionando camadas, e novas formas também. As vezes “re-desdobro” essas esculturas em novas séries de desenhos/pinturas.. e assim o trabalho segue, de um jeito sistêmico, eu diria.. O próprio trabalho como uma ordem muito delicada e instável.
Quais fatos, trabalhos ou experiências mais relevantes/marcantes contribuíram ou afetaram de alguma forma a sua trajetória?
A leitura do livro “A Nova aliança”, do físico químico Ilya Prigogine e da filósofa Isabelle Stengers foi fundamental e inspirador. Os autores falam de uma “escuta poética da natureza” (da matéria) como caminho para um sistema escapar do equilíbrio absoluto e da entropia máxima, onde não há espaço para a novidade, através do surgimento de novas estruturas e ordens instáveis, que se dão por meio de desestabilizações advindas das influências do meio e da auto-organização interna dos sistemas a partir disso. Para mim, o tralho (meu corpo, os materiais, o tempo no ateliê, os pensamentos) forma um equilíbrio instável, que deve sempre se auto organizar para criar estruturas novas, ordens delicadas e permanecer vivo e aberto.
Mais recentemente, em 2018, a maternidade também afetou minha trajetória. Precisei encontrar um novo equilíbrio, entender uma outra percepção do tempo, e me deparei com uma nova espécie de sensibilidade. Sempre me interessei por formas simples, especialmente a do pote, como forma ancestral que acompanha o desenvolvimento humano desde tempos remotos e como forma de receptáculo que tem função de abrigo. Mas foi a partir da maternidade, que comecei a observar com mais consciência e ver beleza nos objetos e nos espaços da casa e do ateliê. Não por acaso, eu tinha guardado para ler nesse momento o livro “Poética do espaço”, do Bachelard.
Outro aspecto que veio com a maternidade foi a adaptação: sinto muita necessidade de estar sempre trabalhando… Como a argila requer um determinado tempo e espaço que em alguns momentos não tinha, passei a experimentar o desenho e a trabalhar mais com pintura, e em cada uma dessas técnicas residem infinitas possibilidades que tenho investigado..
Quais os trabalhos foram mais marcantes?
A instalação minúcias, de 2015; e a série de desenhos, pinturas e esculturas Esculturas imaginárias, de 2019. Esses trabalhos estão diretamente relacionados com as experiências que contei na resposta anterior.
Quais são suas perspectivas? Como se vê daqui um tempo? Tem algum projeto que deseja realizar mais a longo prazo?
Trabalhar muito. E conseguir realizar projetos. Tenho dificuldade de explicar o que quero fazer quando aplico para algum edital, pois eu mesma nunca sei muito bem… Adoraria aprender a fazer isso para conseguir realizar alguns projetos maiores que dependem desse tipo de incentivo e espaço institucional.
Também gostaria de experimentar morar e trabalhar fora de São Paulo, em algum lugar próximo aonde eu tivesse mais contato com a natureza, observar e perceber suas ordens mutáveis é sempre inspirador. Tem também a questão de uma outra percepção do tempo e do espaço, que é diferente da que temos em uma grande metrópole como São Paulo.
Que mulheres (artistas, escritoras, familiares e figuras públicas) foram/são influências e fonte de inspiração?
As artistas Ana Mendieta, Celeida Tostes, Anna Maria Maiolino, Mira Schendel, Eva Hesse, Cecilia Vicuña. A filósofa Isabelle Stengers (já mencionada), Karen Barad (teórica do novo materialismo), e a crítica Rosalind Krauss (especialmente o livro Formless: A User's Guide).
O que você faz para se sentir motivadas em períodos de baixa/desânimo/bloqueio criativo?
Trabalho, ainda que seja um trabalho estranho, sem objetivo, é sempre uma experiência, um exercício. Essa prática diária é importante para mim, uma certa rotina de ateliê. Por exemplo, gosto de reorganizar as coisas nesses momentos, mudar as prateleiras de lugar, tirar da gavetas projetos não terminados, deixar a parede do ateliê limpa e preparada para um próximo projeto, essas coisas… Também leio e pesquiso, mas isso faz parte do trabalho. As vezes mudo totalmente o foco, e depois as coisas vão se relacionando naturalmente.
Quais foram os maiores desafios enfrentados na sua trajetória até agora?
Desde que deixei de lado o trabalho como modelo, que era minha principal fonte de renda, a questão financeira tornou-se um desafio. A maternidade também impõe um desafio, de repensar tudo, de dividir o tempo, aumenta a responsabilidade. Sei que minhas decisões influenciam diretamente a vida de outra pessoa. Não é uma dificuldade, é um desafio de reaprender a pensar as coisas…
Como você enxerga seu papel como mulher artista no cenário artístico nacional?
Existe o papel que já está dado, o de ser mulher e artista. Isso é uma forma de resistência. Tem uma frase do movimento feminista que diz: “O pessoal é político”. Se exerço um outro papel nesse contexto, ele reside nessa esfera, de um olhar sensível para as coisas pequenas e delicadas, provenientes de um trabalho íntimo e intuitivo. Acredito que isso é importante diante de cenários incertos e desafiadores como o que vivemos.
Qual o seu entendimento sobre a necessidade e importância de se ter iniciativas voltadas exclusivamente às mulheres e outros grupos minoritários?
Vejo essas iniciativas como ações imprescindíveis para equacionar um cenário que está desequilibrado há muito tempo. Temos que ter consciência disso e manter um olhar crítico, que estamos construindo, para ver o mundo e para ver dentro também, rever nossa própria postura sempre. É um cenário complexo e com muitas variáveis, pois abrange diversas lutas, muitas que faço parte e muitas que não tenho conhecimento para falar. Mas estamos caminhando coletivamente, para desconstruir estruturas que já não fazem mais sentido e abrir espaço para novas formas de organização desses grupos minoritários. Formas mais inclusivas, construídas com apoio mútuo. Mais ou menos como os sistemas dinâmicos que estudo, acredito que as iniciativas mais férteis vem de dentro de nosso meio, de nós mesmas. Posso falar como mulher, ou como mulher/mãe/artista (grupos minoritários nos quais me incluo): tenho uma visão otimista, estamos evoluindo e resistindo, estou impressionada com a nossa força. Eu descobri isso em mim mesma, e é algo perturbador e maravilhoso.