Perfil | Heloisa Hariadne
Dando continuidade aos perfis de artista, que fazem parte do Trampolim, seção do nosso site em que reunimos entrevistas e portfólios de artistas que admiramos e acompanhamos, apresentamos hoje o trabalho da artista Heloisa Hariadne, que nasceu em1998 em São Paulo, onde reside até hoje.
Nosso primeiro contato com o trabalho da Helô foi na exposição coletiva A noite não adormecerá jamais nos nossos olhos, que aconteceu na galeria Baró em 2019, quando passamos a acompanhar o trabalho da artista através do Instagram. Mais tarde no mesmo ano, nos conhecemos pessoalmente quando convidamos o coletivo Trovoa, do qual Heloisa faz parte, para integrar a conversa Atuar em rede – coletivos e plataforma de arte, ao lado de outras representantes do coletivo, durante o Mergulhos da Piscina, nossa primeira iniciativa offline. Heloisa participou da mostra coletiva Ânima, que organizamos na mesma ocasião.
Na entrevista abaixo, feita um pouco por escrito, um pouco por áudio de WhatsApp, a artista nos conta um pouco sobre seu processo criativo, os principais entraves que ela percebe existir no universo artístico e também sobre sua trajetória, que está apenas começando e tem tudo para ir muito longe.
Você pode contar um pouco sobre sua formação e trajetória? Como se deu a escolha de trabalhar como artista?
Por conta da carga horária de trabalho dos meus pais, praticamente durante toda infância, fui cuidada pelos meus avós. Quando vi essa pergunta, me veio essa memória de infância na casa da minha vó. Ela sempre teve muita sensibilidade para encontrar uma certa divindade na materialidade das coisas. Isso foi algo que me marcou.
Como ficava muito tempo em casa, uma amiga da minha vó, que também se chamava Heloisa, começou a me dar aulas de desenho quando eu tinha uns 5 ou 6 anos. Ela me ensinou o básico do básico, coisas simples como segurar o lápis, esfregar o dedo para gerar algum tipo de sombra. Depois, fiz o Ensino Médio integrado com um curso técnico em Comunicação Visual pela ETEC onde tive aulas de história da arte e a partir daí, quis entender como esse mundo funcionava de verdade. Antes de cursar Artes, prestei o vestibular para Relações Públicas, por gostar de comunicação e também por nunca ter tido contato direto com uma pessoa que fosse só artista. Conheci professores que eram artistas, mas não conheci uma pessoa que tirasse sua renda vendendo quadros ou algo assim, até porque isso é algo ainda bem irreal para pessoas racializadas.
Até a metodologia de ensino de História da Arte que eu tive, tinha como base países europeus e artistas brancos, herdeiros, com aquele tipo de representação de famílias brancas da realeza cobertos de ouro. Isso acaba entrando no nosso inconsciente de tal maneira que quando a gente pensa em ser artista sempre vem um pensamento: “Tá, vou ser artista. Mas como vou financiar minha vida?” Mas depois de seis meses no curso de Relações Públicas, saí e entrei em Artes Visuais na Belas Artes. Não foi uma decisão impulsiva e sim construída. Talvez até pudesse ter ido direto para o curso de Artes se não me sentisse tão insegura, por esse ser um mercado invisível e cheio de artimanhas. Nesse sentido, a internet foi essencial e é parte do meu processo.
Qual sua pesquisa atual e que trabalhos você tem desenvolvido nos últimos tempos?
Trabalho com pintura e performance. Me criei na pintura, porque sempre gostei de pintar, mas me aproximei da performance, que pra mim é uma expressão do meu desejo de estar sempre em movimento.
Quais fatos, trabalhos ou experiências mais relevantes/marcantes contribuíram ou afetaram de alguma forma a sua trajetória?
Eu gosto muito de lembrar da exposição coletiva A noite não adormecerá jamais nos nossos olhos, que partiu do Nacional Trovoa e teve curadoria da Carollina Lauriano. Houve espaço de construção junto com a exposição e pude realmente me sentir parte de algo que não acaba na data de abertura e fechamento. A exposição coletiva que participei com a curadoria da Piscina, também teve um pouco disso, não do processo em si, mas de entender como funcionava e com quem eu ia estar junto. Eu também participei muito da minha primeira individual, na Matilha Cultural, em 2019, que eu fiz tudo, menos o texto de parede, que foi da curadora Juliana Akina. Eu acho que o processo individual tem muita importância, mas para mim a potência de ter feito parte de exposições com outras artistas mulheres, que participaram ativamente das propostas do começo ao fim foi, e ainda é, muito forte.
Quais os trabalhos foram mais marcantes?
Acredito que todos os meus trabalhos foram marcantes. Tento estar presente em tudo que faço e quando não me sinto tocada, prefiro esperar, me resolver, para depois continuar. Por isso mantenho a memória de todos eles muito viva dentro de mim.
Quais foram os maiores desafios enfrentados na sua trajetória até agora?
Acho que o meu maior desafio é seguir produzindo, mas muita coisa avançou e eu também avancei como pessoa e hoje consigo enxergar com mais “afeto” coisas que fiz no passado. Estou começando a entender a continuidade do meu processo. É complicado lidar com o enfrentamento da ideia pré-concebida de que nós artistas não vamos ter um lugar e de que sempre vamos trabalhar de forma precária.
Apesar de eu ter a minha trajetória, de estar concluindo a faculdade e de já ter feito exposições e residências, acho que o que pega muito é se pautar por esses modelos pré-estabelecidos que ditam o que deve ser uma trajetória: os títulos, as conquistas institucionais… É difícil se distanciar desse modelo e conseguir identificar a importância do seu próprio percurso.
Como se dá seu processo criativo? Como é o seu dia a dia no ateliê? Você produz todos os dias?
Minha vó construiu uma casa ao lado da casa dela. Ela pretendia alugar, mas como a casa está vazia por enquanto, é lá que eu pinto, porque o pé direito é um pouco mais alto e dá para fazer qualquer coisa. Talvez essa seja meu ideal de ateliê, fora e dentro de casa ao mesmo tempo, porque é no mesmo quintal. Acho bom pelo fato de ser um lugar que é uma extensão de casa, sabe? Que você não precisa ir muito longe, se deslocar.
Para produzir eu gosto de colocar uma playlist de músicas (que não dão vontade de dançar) e às vezes também fico pensando em questões atuais. Muitas vezes, os títulos vêm quando eu estou pintando, vêm também algumas formulações de frases. Gosto de pensar em mulheres e em movimentos que eu fiz no dia para colocar na tela.
Estou tentando produzir todos os dias, mas tem sido um processo orgânico. E agora que estou de férias vou me empenhar para ter um horário fixo para a pintura, porque como eu nunca pude ficar fazendo só isso, não sei como seria ter 6 ou 12 horas só para pintar. Pude sentir um pouco como funcionaria durante o isolamento, mas eu ainda estava cumprindo muitas obrigações acadêmicas, então agora que estou 100% de férias verei como será realmente.
O que você faz para se sentir motivada em períodos de baixa/desânimo/bloqueio criativo?
É complexo falar de bloqueio criativo, já que as práticas artísticas que desempenho não me fazem ficar presa a essa ideia. As experiências e técnicas para produzir “estalos de criação” são muito particulares. Às vezes precisamos de uma rotina, às vezes não. Mas eu penso muito sobre sempre dar sentido à técnica, para que ela não se automatize, fazendo com que eu fique estagnada, sem conseguir sair daquilo.
Quais são suas perspectivas? Como se vê daqui um tempo? Tem algum projeto que deseja realizar mais a longo prazo?
É difícil projetar arte para um futuro tão cheio de incertezas. Quero fazer mais residências artísticas, conhecer culturas, continuar articulando possíveis formas de arte cotidiana e naturalizar o ser artista cada dia mais. Acho que isso não tem uma data de validade ou uma ideia de prazo, é algo que precisa estar plantado em mim sempre.
Um plano mais concreto é que eu quero continuar a fazer performances no mar. Eu tenho pensado muito nessa performance como algo que eu gostaria de fazer sempre, com certa regularidade. Ir até o mar e pintar. Como por enquanto não tem como, estou usando esse tempo para planejar e estruturar essa ação.
Que mulheres (artistas, escritoras, familiares e figuras públicas) foram/são influências e fonte de inspiração?
A lista de mulheres que me inspiram é infinita, inclui desde a minha vó e mãe até artistas como Zanele Muholi, Rosana Paulino, Jordan Casteel, Njideka Akunyili, Juh Almeida, Nina Satie, além de todas as mulheres que integram o Levante Nacional Trovoa. Essas mulheres, que eu tanto admiro, são parte das minhas vivências e formam aquilo que eu sou. Como artista não crio uma distância entre o que vivo e a minha criação, por isso o meu trabalho carrega referências e inspirações tão diversas.
Como você enxerga seu papel como mulher artista no cenário artístico nacional?
Para mim ainda é muito difícil me ver como parte do cenário artístico oficial, já que esse cenário, para ser algo em que pessoas como eu possam ser incluídas, precisa se reinventar radicalmente. O problema é que as pessoas que são favorecidas por esse sistema não querem que isso aconteça.
Qual o seu entendimento sobre a necessidade e importância de se ter iniciativas voltadas exclusivamente às mulheres e outros grupos minoritários?
Acho que essas iniciativas são necessárias, porque foram anos fortalecendo estruturas que só favorecem o homem branco na arte. Precisamos de movimentos que impulsionem outros grupos, que para mim são responsáveis por criações únicas. Já ouvi algumas vezes a frase “agora todo mundo é artista”, e sim, que bom que somos todos artistas! Mas a verdade é que o mercado da arte ainda é seletivo e não chega nem perto de contemplar a todos, fazendo com que iniciativas para mulheres, travas, bixas, sapatões sejam fundamentais para que possamos enfim nos sentir à vontade para circular por esse circuito.