Perfil | Mônica Ventura
Esta semana, como parte dos perfis de artista, do nosso Trampolim – onde reunimos entrevistas e portfólios de artistas que admiramos e acompanhamos –, apresentamos o trabalho da artista Mônica Ventura, nascida em 1985, em São Paulo, onde reside. Sua prática artística abrange principalmente trabalhos em escultura e performance.
Conhecemos o trabalho da Mônica na exposição Matrix Colonial, que aconteceu na CZO Art Space, em março de 2019. Na ocasião, vimos Remoção, vídeo registro da ação em que artista remove uma máscara de seu rosto. Nas palavras do curador, Gabriel Hilair, a obra “nos faz pensar na necessidade de se remover a máscara social imposta no cotidiano brasileiro onde o conceito de modelo imposto é branco - máscara esta naturalizada como uma verdade social absoluta que, em consequência, nos faz vítimas de uma tentativa de homogeneização identitária a partir de cânones eurocêntricos.”
Ainda em 2019 nos conhecemos pessoalmente na conversa Atuar em rede – coletivos e plataforma de arte, na qual Mônica e outras artistas do coletivo TROVOA participaram durante o Mergulhos da Piscina. Agora, temos o prazer de poder compartilhar um pouco do seu trabalho aqui em nosso espaço virtual.
Na entrevista abaixo, Mônica nos conta sobre a sua formação e trajetória, sobre seus trabalhos mais marcantes, suas principais influências e desafios.
Você pode contar um pouco sobre sua formação e trajetória? Como se deu a escolha de trabalhar como artista?
Sou bacharel em Desenho Industrial pela Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) - São Paulo. Minha formação teve foco em História da Arte e Design. Nesse período cresceu meu fascínio pelo fazer artístico e pelas manualidades. Minha pesquisa de conclusão de curso, no ano de 2012, foi sobre artesanato, fiz uma comparação com a artesania do mercado de luxo e as práticas de artesanato no Brasil. Em 2014, depois de transitar entre design e moda iniciei minha pesquisa em artes visuais. Em 2015 fui convidada pelo curador Tobi Mayer a integrar o time de artistas em uma intervenção performática organizada pelos alunos do curso de curadoria do MAM-SP. Para esse projeto elaborei uma performance sobre Carolina Maria de Jesus e que aconteceu em frente ao Museu Afro Brasil. Acho que foi a experiência que me fez entender o fazer artístico como uma atividade multidisciplinar e de extrema criatividade, senti que era o que eu gostaria de fazer. No mesmo ano comecei a trabalhar como assistente de uma artista muito legal, a Sara Ramo, foram 3 anos de envolvimento, pude colaborar em projetos super interessantes que me fizeram ampliar minha visão e conhecimento do fazer artístico. Em 2018 eu ganhei meu primeiro prêmio no edital Mostra de Exposições do Centro Cultural São Paulo, onde apresentei meu trabalho O Sorriso de Acotirene.
Qual sua pesquisa atual e que trabalhos você tem desenvolvido nos últimos tempos?
Atualmente pesquiso filosofias e processos construtivos de arquitetura e artesanato pré coloniais (Continente Africano - Povos Ameríndios - Filosofia Védica). Utilizo essa investigação para a elaboração de práticas artísticas geradas a partir de experiências pessoais. Minhas obras falam sobre o feminino e a racialidade em narrativas que buscam compreender a complexidade psicossocial da mulher afrodescendente inserida em diferentes contextos.
Quais fatos, trabalhos ou experiências mais relevantes/marcantes contribuíram ou afetaram de alguma forma a sua trajetória?
Um trabalho que me marcou foi em 2018, quando ganhei meu primeiro prêmio no edital Mostra de Exposições do Centro Cultural São Paulo com o trabalho O Sorriso de Acotirene. Essa obra me envolveu muito, durante o processo de produção me aprofundei em muitos aspectos culturais contidos no desenho do projeto e que eu desconhecia. Digamos que elementos da minha ancestralidade afro-indígena apareceram fortemente, foi como se eu tivesse acessado uma consciência ancestral. A pesquisa aborda ancestralidade mas também nos convida a conhecer Acotirene, uma personagem emblemática do Quilombo dos Palmares que foi apagada dos livros de história. Há poucas informações disponíveis sobre esta forte personalidade que foi antecessora de Ganga Zumba e Zumbi dos Palmares, uma mulher líder quilombola. Acotirene é a força feminina que encontramos em nossas mães, avós, irmãs, tias, professoras e amigas, uma conselheira de pulso forte. O feminismo negro cada vez mais em voga ganha espaço nas mídias e está firmado em suas próprias pautas e eu enquanto artista mulher negra olho com atenção para elas. A ancestralidade é uma chave para lembrarmos de quem somos e de seguir se desvinculando do plano colonizador que visa polir a individualidade. A negritute me mostra um novo olhar nas artes e tento trazer esse belo ruído organizado para meu trabalho fugindo do formalismo estético e asséptico. No ano seguinte, em 2019, a obra O Sorriso de Acotirene esteve na exposição Histórias Feministas do MASP, um desdobramento muito significativo na minha trajetória.
Quais são suas perspectivas como artista? Como se vê daqui um tempo? Tem algum projeto que deseja realizar mais a longo prazo?
Tenho muitas projeções pessoais, pretendo continuar minhas negociações com as instituições culturais e artísticas. Esse é um momento bem especial onde cada vez mais podemos ver produções de artistas negras sendo inseridas em coleções de grandes instituições internacionais e aqui no Brasil estamos iniciando esse movimento. Outro projeto para longo prazo é voltar a estudar, pretendo iniciar meu mestrado em Projeto, espaço e cultura na FAU-USP.
Que mulheres (artistas, escritoras, familiares e figuras públicas) foram/são influências e fonte de inspiração? São muitas mulheres que me inspiram. Faço parte da TROVOA, um levante nacional de artistas e curadoras e essas mulheres me inspiram diariamente. Penso também em Ana Lira, artista e pesquisadora que me ensina muito com sua pesquisa. Tem também a Aline Motta, uma amiga e artista genial com uma poética muito potente entre artes visuais e cinema, destaco a amiga e artista visual Renata Felinto, que está concorrendo o prêmio Pipa deste ano e também a amiga Ana Beatriz Almeida, curadora, artista visual que tem uma pesquisa muito envolvente sobre temas relacionados a cultura afro diaspórica. Sou apaixonada pelos trabalhos da Maria Thereza Alves, Otobong Nkanga e Tabita Rezaire.
O que você faz para se motivar em períodos de baixa/desânimo/bloqueio criativo?
A criação para mim é bem sistemática, de fato foram 4 anos de formação em design que é sobre projeto e criação. Não tenho o costume de criar a partir de um insight ou um momento de iluminação. Acredito que minha arte é feita a partir de uma pesquisa que se utiliza de meios práticos para ser materializada. Então para me animar e desbloquear eu pesquiso. Hoje tenho preferido ler pesquisas teóricas para me inspirar. Recentemente li muitos artigos sobre geopolítica nas artes visuais.
Quais foram os maiores desafios enfrentados na sua trajetória até agora?
A (o) artista brasileira (o), de um modo geral, infelizmente ainda não tem sua profissão valorizada com as condições básicas como qualquer outra profissão. Por exemplo, é muito comum receber convites extremamente atraentes porém sem cachê envolvido. Isso para mim é um grande desafio, o capitalismo simbólico. Atualmente aqui em São Paulo há um grupo de artistas visuais contemporâneos, os Trabalhadores da Arte, que pretendem organizar valores e condições para serem implantados e seguidos pelas instituições em território nacional, como já acontece no Canadá, por exemplo.
Como você enxerga o papel da sua atuação como mulher artista no cenário artístico atual?
Minha produção enquanto mulher artista negra leva também o meu corpo a ocupar espaços socialmente interditados, e com isso eu acabo levando junto muitas outras vozes e corpos para dentro das instituições. Me emociono e fico muito feliz em receber feedbacks nas minhas redes sociais sobre como minhas obras motivam outras mulheres negras. É muito especial perceber que as narrativas se repetem, que somos muitas e que temos a vontade de romper um sistema hegemônico.
Um parênteses para falarmos um pouco sobre o momento atual: além da pandemia de covid-19, temos ainda uma crise política e ética no país. Quais foram os impactos e desdobramentos desse momento para você nos âmbitos profissional e emocional?
Primeiramente esse período veio e intensificou ainda mais minhas convicções sobre os devaneios de nossa sociedade. Não podemos falar das mazelas que uma pandemia traz sem falar das causas que a geram. Hábitos nocivos altamente naturalizados comprometem nossa vida em sociedade, seja o consumo de carne, a produção de animais confinados, o plantio extensivo e monocultura, e o desmatamento de nossas áreas verdes. Aqui no Brasil temos uma infeliz situação de crise nas instituições democráticas e que vai impactar os mais pobres e vulneráveis. Claro que tem uma grande dose de resiliência e vamos continuar caminhando mas para mim ficou muito nítido a divisão dos lados em nossa sociedade, essa crise vem desde 2013 e ainda não conseguimos ultrapassar o bipartidarismo. O Brasil está muito doente e não apenas com coronavírus. Todo esse cenário nos impacta fortemente, eu fortaleço minha bolha com bons pensamentos, práticas de yoga e aromaterapia para relaxar e não acumular stress. E sinto, um dia após o outro, com muita paciência vou analisando e sentindo esse período estranho e delicado.
Qual o seu entendimento sobre a necessidade e importância de se ter iniciativas voltadas exclusivamente às mulheres e outros grupos minoritários?
Penso que essa lógica deveria ser o ponto de partida para um projeto que envolva uma seleção de artistas. Apesar de os negros no Brasil serem a maioria da população, cerca de 54%, ainda estamos dentro do grupo de minorias. Mesmo sendo um número relevante a presença negra está interditada a adentrar determinados espaços e circuitos, sofrendo uma situação de desvantagem social. Sendo os grupos dominantes que atualmente determinam o que se entende por minoria se valendo de padrões normativos, é necessário e muito importante a inserção de indivíduos que fazem parte de grupos minoritários no sistema da arte e em todas as outras esferas da sociedade, levando em consideração todas intersecções que possam surgir (raça, gênero, orientação sexual, classe, regionalidades, etc).
Na atualidade podemos perceber um aumento quantitativo de novas narrativas (antes marginalizadas) sendo incorporadas, cada vez mais. Isso é uma conquista e devemos lutar por sua permanência.