Perfil | Rebeca Ramos

Conhecemos a Rebeca durante o Mergulhos da Piscina, evento que realizamos em 2019 e no qual convidamos coletivos de mulheres artistas (Trovoa, Amapoa, YVY Mulheres na Imagem) para debatermos as possibilidades de se atuar em rede. Após esse encontro, passamos a acompanhá-la nas redes e tivemos o prazer de conversar via email com a artista e conhecer um pouco mais sobre sua trajetória e sobre as questões presentes em seu trabalho.

Rebeca Ramos nasceu em 1999, na cidade de São Paulo, onde reside e cursa Artes Visuais no Centro Universitário Belas Artes. Durante a faculdade, Rebeca atuou como arte-educadora, atividade que teve uma grande influência em seu entendimento sobre o papel da arte e também em sua prática como artista. Para ela, a relação entre mediador e público em uma exposição cria trocas ricas e espaços de aproximação e pertencimento.

Essa noção de pertencimento, bem como os conceitos de distância, referenciais e imaginários urbanos são abordados em seu trabalho através de cartografias criadas pela artista como modo de compreender o lugar onde vive. Em suas pinturas, Rebeca aborda suas reflexões sobre a cidade e suas dinâmicas sociais, explorando como diferentes percepções podem afetar diretamente as políticas de organização dos espaços urbanos, principalmente no que diz respeito às periferias e favelas.

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Você pode contar um pouco sobre sua formação e trajetória? Como se deu a escolha de trabalhar como artista?
Estou no processo de conclusão do Bacharelado em Artes Visuais pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Essa pergunta eu me faço sempre,  já que ao ingressar no bacharelado eu não almejava ser artista, meu interesse era puramente teórico, então acredito que a idéia de ser artista foi se formando ao longo destes quase quatro anos. Outro ponto da minha formação é o trabalho com mediação em exposições, já que o contato com os públicos afeta constantemente como vejo minha produção, minha formação e o “ser artista”. 

Você reconhece algum aspecto da sua infância ou adolescência que tenha influenciado na sua escolha pelas Artes Visuais?
Sim, na minha pré-adolescência meu pai trabalhava em um museu daqui de São Paulo e embora o cargo fosse operacional, ele acompanhava os eventos. Ele, muito sensível, sempre que chegava em casa fazia questão de compartilhar comigo e com minha irmã sobre tudo o que aprendia e de certa forma sua empolgação  desenvolveu em mim um grande interesse em saber mais.

Rebeca Ramos O m2 mais caro, o sistema de vigilância e a cantiga de infância, 2020 [tríptico] Acrílica, grafite e marcador permanente sobre tela 30 x 20 cm (cada)

Rebeca Ramos
O m2 mais caro, o sistema de vigilância e a cantiga de infância, 2020 [tríptico]
Acrílica, grafite e marcador permanente sobre tela
30 x 20 cm (cada)

Qual sua pesquisa atual e que trabalhos você tem desenvolvido nos últimos tempos?
Desde 2018 eu venho trabalhando com cartografia e mapeamento e o trabalho que considero principal é a série de pinturas à guache sobre papel O que as cores têm a dizer (2018 – em andamento), em que pinto vistas aéreas de bairros da Zona leste de São Paulo. Esse trabalho veio como uma forma de entender o próprio lugar onde vivo. O que difere das outras zonas da cidade? Por que tão distante? E distante de quê? Qual o referencial?  Estas questões têm direcionado minha produção como um todo e eu me vejo em um momento da pesquisa de me atentar aos imaginários sociais e suas formas de modelar o meio urbano.

Em meu ultimo trabalho,  O m² mais caro, o sistema de vigilância e a cantiga de infância (2020)  eu mesclo vista aérea do bairro Vila nova Conceição (considerado um dos metros quadrados  de SP mais caros para venda por dois grandes portais de revistas nos anos 2017 e 2018) à uma música que eu amava cantar quando criança (Se essa rua fosse minha), para refletir sobre quem são os verdadeiros “donos da rua” ou melhor, quem deveria ser. O pertencimento ou falta dele em certos espaços da cidade, são vivenciados desde a infância por corpos não hegemônicos e eu pude perceber e continuo percebendo isso na pele, por ser uma mulher negra e periférica, mas também na prática com crianças em instituições culturais já que os espaços expositivos não estão isentos do racismo estrutural e é por isso que eu vejo o trabalho dos arte-educadores/mediadores como sendo tão fundamental.

A coisa que mais me chama atenção atualmente é como os imaginários em torno de determinados territórios da cidade afetam as políticas de organização de espaços urbanos, principalmente das periferias e favelas.
— Rebeca Ramos

Como surgiu o interesse em trabalhar a temática da cidade e de seus agentes? E quais os principais pontos de conflito/interesses atuantes na cidade que você percebeu ao tratar dessa temática na sua pesquisa?
A escolha pela temática urbana nasceu da minha experiência na cidade de São Paulo. Moro em São Miguel Paulista, bairro na zona leste de São Paulo e até a adolescência não precisava me deslocar muito pela cidade, estudava a duas ruas de casa. Mas no ensino médio e depois na faculdade meus trânsitos pela cidade passaram a ser maiores e as diferenças vistas pela janela do metrô/ônibus e pelos lugares que passava a conhecer passaram a me incomodar, principalmente quando eu era tratada como “o outro” por ser uma mulher negra.

Por não ter formação em Arquitetura e Urbanismo, conforme eu vou estudando muita coisa vai me surpreendendo no processo, mas a coisa que mais me chama atenção atualmente é como os imaginários em torno de determinados territórios da cidade afetam as políticas de organização de espaços urbanos, principalmente das periferias e favelas. No díptico Estigma e Potência (2020) eu tento trazer isso ao pintar em duas folhas de papel a silhueta do território de jurisdição da prefeitura regional de São Miguel Paulista. Na primeira, o limite territorial está pintado de cinza com a palavra estigma de preto e na segunda pintado de amarelo, potência

Quais fatos, trabalhos ou experiências mais relevantes/marcantes contribuíram ou afetaram de alguma forma a sua trajetória? 
Como disse anteriormente, a prática educativa sempre contribui com minhas práticas artísticas é uma retroalimentação. Ter feito parte do coletivo Trovoa, também  foi uma experiência que contribuiu positivamente com a forma que vejo a profissão artista.

Acredito que nós, mediadores e arte-educadores, trabalhamos nestas fraturas junto com o público, criando ambientes de pertencimento, afeto e trocas horizontais de forma a minimizar ou mesmo acabar com as distâncias e hierarquizações.
— Rebeca Ramos

Como foram suas experiências como arte-educadora? E como você acha que a arte-educação e mediação podem influenciar positivamente o público com o qual ela se relaciona?
Minha experiência se deu ainda em regime de estágio como monitora e mediadora em exposições, primeiro no Museu Catavento Cultural (2018), depois na Fundação Ema Gordon Klabin (2018-2019) e mais tarde na exposição Conversas na Praça: o Urbanismo de Jorge Wilheim no SESC Consolação (2019). Em ambas as experiências o objeto arquitetônico e expográfico estabelece grande influência nas experiências dos públicos (e consequentemente, na minha também) seja de conforto ou desconforto e era justamente nesse ponto em que nós (núcleo educativo) trabalhávamos. Foram todas experiências muito ricas. E eu acho que é isto, nós mediadores e arte-educadores trabalhamos nestas fraturas junto com o público, criando ambientes de pertencimento, afeto e trocas horizontais de forma a minimizar ou mesmo acabar com as distâncias e hierarquizações.

Quais são suas perspectivas como artista? Como se vê daqui um tempo? Tem algum projeto que deseja realizar mais a longo prazo? 
Tenho vários projetos, mas principalmente pretendo continuar criando em ou através da arte-educação.

Rebeca Ramos Favela encontros e despedidas, 2020 Guache sobre papel 28,3 x 20,9 cm

Rebeca Ramos
Favela encontros e despedidas, 2020
Guache sobre papel
28,3 x 20,9 cm

Rebeca Ramos Rua dos eucaliptos, 2020 Guache sobre papel  28,3  x 20,9 cm

Rebeca Ramos
Rua dos eucaliptos, 2020
Guache sobre papel
28,3 x 20,9 cm

Que mulheres (artistas, escritoras, familiares e figuras públicas) foram/são influências e fonte de inspiração? 
São várias as mulheres que me influenciam constantemente. As mulheres da minha família me alimentam com amor, com ensinamentos e práticas variadas; o cuidado e trabalho delas me inspiram. Rosana Paulino, Rosana Ricalde, Daniela Ortiz, Heloisa Pajtak, as mulheres do Coletivo Trovoa são algumas das muitas artistas visuais que são referência pra mim. Acompanhar pelas redes sociais a arquiteta e urbanista Ester Carro e o trabalho incrível no qual ela faz parte chamado Fazendinhando também me inspira muito. 

O que você faz para se motivar em períodos de baixa/desânimo/bloqueio criativo?
É interessante essa pergunta agora, pois eu acabo de sair de um período de bloqueio criativo intenso em que percebi que a melhor alternativa é deixar passar enquanto vou me nutrindo de referências, seja lendo um livro, ouvindo uma musica ou conversando com quem me faz bem.

Quais foram os maiores desafios enfrentados na sua trajetória até agora?
Me entender como artista e ver valor na minha produção foi o maior desafio.

Como foi esse processo de se entender como artista? E de onde você acha que parte essa questão de várias artistas precisarem passar por diferentes processos para valorar a própria produção? 
Tem sido um processo difícil. Eu preciso me relembrar todos os dias que sou artista e que há valor na minha produção e isso graças às estruturas hegemônicas do sistema de arte. Se é difícil para mulheres em geral se imporem e terem seus trabalhos reconhecidos, penso que para nós, mulheres racializadas, é ainda mais difícil, porém seguimos porque é sobre isso. 

Rebeca Ramos Campinho da Rua Muniz Gordilho, 2020 Guache sobre papel 28,3 x20,9 cm

Rebeca Ramos
Campinho da Rua Muniz Gordilh
o,
2020
Guache sobre papel
28,3 x20,9 cm

Como você enxerga o papel da sua atuação como mulher artista no cenário artístico atual?
Diversas mulheres artistas vem desenvolvendo trabalhos incríveis nas artes e eu espero contribuir para que outras mulheres possam abordar, falar e pesquisar sobre o que eles quiserem. 

Um parênteses para falarmos um pouco sobre o momento atual: além da pandemia de covid-19, temos ainda uma crise política e ética no país. Quais foram os impactos e desdobramentos desse momento para você nos âmbitos profissional e emocional? 
Vejo que o momento atual tem servido para repensarmos nossas práticas artísticas e também nossos hábitos.  Eu optei por respeitar meu tempo, por entender que estou no meio de uma pandemia e as prioridades agora são outras. E assim eu vou produzindo, vou me conectando com pessoas incríveis que jamais pensei me conectar um dia por meio das redes sociais, vou pesquisando, focando na conclusão da minha graduação e pensando maneiras de furar as bolhas.

perfil, entrevistas, trampolimPaula Plee