Gabriella Garcia – Esse sonho pode nunca acontecer
Uma das coisas mais interessantes e, diria até, gratificantes da Piscina é poder acompanhar o trabalho de algumas artistas ao longo dos anos. Gabriella Garcia foi uma das artistas que esteve conosco desde os primórdios da plataforma. Vimos quando ela fez sua primeira individual na Galeria Recorte em 2016, a convidamos para participar da nossa primeira exposição, que aconteceu no ano seguinte no mesmo local; acompanhamos sua residência no Pivô Pesquisa e, mais uma vez, tivemos dois de seus trabalhos em Ânima, exposição pop-up que fez parte do evento Mergulhos da Piscina, no final de 2019.
As obras presentes em Esse sonho pode nunca acontecer, individual de Gabriella Garcia em exibição na Galeria Lume, nascem nesse contexto de suspensão do qual ainda não saímos totalmente. A mostra traz trabalhos recentes da artista nos quais é possível ver diferentes desdobramentos da pesquisa que ela desenvolveu ao longo dos anos.
Distribuídas entre os dois salões da galeria, as obras em Esse sonho pode nunca acontecer trazem uma narrativa, contam uma história na qual encenam equilíbrios, desafiam percepções e convidam a refletir e questionar o que está diante de nossos olhos.
No primeiro espaço, ao entrar na galeria, olhando para a esquerda, nos deparamos primeiramente com uma grande tela branca, A matéria do sonho, (2021), na qual a artista incorpora os drapeados e dobras de tecidos – uma prática já presente em trabalhos anteriores e que Gabriella desenvolveu e intensificou nos últimos anos. Diante deste trabalho estão Entre véus e gestos equivocados e Entre drops, dramas e drapeados, duas pinturas à óleo realizadas em 2021 nas quais estão representados fragmentos de drapeados, tecidos e volumes retirados de imagens de pinturas clássicas, fotografias e até de registros de seus próprios trabalhos.
É interessante notar como a colagem – meio pelo qual a artista iniciou sua trajetória e marcou seus primeiros trabalhos – se faz presente nessas duas obras, não só formalmente, na composição de imagens fragmentárias ali representadas, mas também em seu processo de criação. A artista conta que as colagens são de fato o ponto de partida para estas pinturas.
Ocupando o centro do salão estão as esculturas O sonho que ainda não sonhei (2021), na parede, e no chão, as esculturas Chorando Na Pedra e Sonho cíclico (2021). Posicionados de frente para a segunda sala da exposição, estes trabalhos dialogam com as obras que ali se encontram ao revelarem discretamente alguns dos elementos que veremos no ambiente ao lado. Nestes trabalhos e em Sequência de sonhos com pequenas variações relacionadas a aleatoriedades passadas (2021), a materialidade das dobras dos tecidos sai das telas para ganhar a tridimensionalidade e a relação direta com o espaço, transmitindo leveza e maleabilidade ao mesmo tempo em que estão enrijecidos, como que parados no tempo, congelados, em suspenso, assim como estivemos durante o período incerto e solitário do isolamento social.
A artista conta que em O sonho que ainda não sonhei ela une, pela primeira vez, o ovo – elemento presente desde o início de sua pesquisa com colagens –, às esculturas de tecido. Na obra, o ovo esculpido em pedra vem pousar sutilmente em uma das dobras que parecem também cuidadosamente esculpidas, acolhendo o ovo, nos remetendo à sensações de proteção, abrigo e amparo. Não seriam essas as noções que mais buscamos diante das incertezas?
Nas esculturas Chorando Na Pedra e Sonho cíclico (2021) as dobras escultóricas parecem pairar como que por acaso por cima de pedras, como se tivessem sido sopradas de muito longe até pairar sutilmente em cima destes elementos naturais, evidenciando uma dicotomia bastante presente no trabalho de Gabriella: a leveza e o peso. Se em trabalhos anteriores a artista trabalhava esculpindo formas para que estas aparentassem elementos naturais dotados de grande peso enquanto eram na realidade muito leves, nestes trabalhos recentes, ela se apropria de rochas naturais que, por vezes, a partir de determinados ângulos parecem estarem suspensas, como se os tecidos as tivessem, como que por mágica, as levantado.
Com uma ambientação completamente diversa, a sala adjacente foi concebida pela artista como um portal que transporta o visitante para “um lugar incomum, como se fosse um sonho, quando você vira a esquina em um sonho e está em outro lugar", nas palavras da própria artista. A sala é pensada dentro de uma lógica cênica, na qual encontramos “pinturas de representações de esculturas e esculturas de representações".
A referência ao teatro e à arquitetura clássicos é evidenciada não só no arranjo cenográfico no qual se dispõem as obras, mas principalmente nas esculturas que ocupam o centro do espaço: tanto a dupla de esculturas Nós não somos assim tão fortes (2021) e Exibiu-se sua face verdadeira (2021), como as três esculturas intituladas Mitos, farsas e alegorias (2021) encenam o que a artista chamou de “equilíbrio forjado". A aparente estabilidade movediça das peças, busca questionar o que se vê e o que se toma como verdade a partir das aparências.
Outro trabalho que brinca com a nossa percepção é Jurei mentiras (2021) e as demais pinturas a óleo sobre mármore. Ao escolher pedaços de pedra com tonalidades que se assemelham à sua paleta de trabalho e ao pintar sobre sua superfície, a artista mais uma vez busca questionar o que se vê. É preciso avaliar de perto para compreender o que se trata de pintura a óleo e o que é a pigmentação natural da própria pedra.
Ainda no centro da sala, as pinturas sobre seda, enfatizam o recurso cenográfico empregado pela artista na composição do espaço. Em O vôo da memória, A sombra do peso e O véu do sol (2021), a artista pinta em camadas formas primordiais compostas a partir de 5 cores de tinta acrílica.
Na parede lateral esquerda vemos Esculturas Imaginarias Em Lugares Que Não Existem, um conjunto de pinturas realizadas no início da pandemia, em 2020. Como o nome mesmo já sugere, essas obras que representam esculturas que existem somente na tela, em um espaço mais contido. Tendo sendo realizadas em meio a pandemia, elas são um exercício sobre o que era permitido criar naquele momento.
Já na parede oposta, temos um outro conjunto de trabalhos escultóricos realizados em mármore e gesso. Em A Origem Incerta Dos Contos (2021) parece que estamos diante de uma espécie de arqueologia da forma e da gênesis das formas e elementos que vemos se desdobrar de diferentes maneiras ao longo da mostra, seja em objetos-pedra esculpidos, sejam nas pinturas sobre pedra e sobre seda.
Esse pensamento sobre a origem, o primordial e o início da vida se materializa mais uma vez no conjunto de trabalhos presente nesta sala através da forma do ovo, um elemento bastante simbólico para os tempos em que vivemos, remetendo à fertilidade, ao nascimento e à criação. Nesse sentido,Vênus, Diamante e Horizonte (2021), composto de uma escultura e de uma pintura que representa a própria escultura, é uma espécie de monumento dedicado a essa noção de fertilidade e nascimento, onde a fragilidade do ovo se equilibra sobre estruturas sólidas. Esse elemento, o ovo, nos lembra de que precisaremos todos renascer, sair da casca, eclodir para fora após um denso período de introspecção.
Gabriella Garcia – Esse sonho pode nunca acontecer
com textos de Ode, Carolina Lauriano, Guilherme Teixeira e Paulo Kassab
até 25 de setembro na Galeria Lume
Rua Gumercindo Saraiva, 54 - Jardim Europa, São Paulo
Horário: segunda a sexta-feira, das 10 às 19h, e sábado das 11 às 15h