Perfil | Larissa Souza
O Perfil de artista que apresentamos hoje foi feito em colaboração com a curadora independente Núria Vieira, que entrevistou a artista Larissa Souza na ocasião da sua primeira individual Pertencimento, que esteve em exibição de 16 de julho a 15 de agosto no espaço expositivo da HOA. A partir dessa entrevista conduzida pela Núria, apresentamos mais algumas questões à Larissa e o resultado desse compilado de perguntas e respostas você pode conferir a seguir.
Larissa Souza nasceu na Zona Leste de São Paulo em 1995. É principalmente através da pintura que a artista desdobra temáticas ligadas ao cotidiano, à ancestralidade, às suas memórias e subjetividades pessoais. O afeto, algo que a artista traz como referência em seu trabalho, é algo latente em suas telas, seja através dos detalhes que são cuidadosamente incorporados nas pinturas, seja pela linguagem corporal das figuras ali retratadas. Todos os elementos nos remetem à uma harmonia individual ou familiar que expressam um desejo da própria artista de retratar “cenas que gostaria de ter visto no lugar onde cresci".
Você pode contar um pouco sobre sua formação e trajetória? Como se deu a escolha de trabalhar como artista?
Não tenho formação acadêmica, mas sempre fazia cursos livres e técnicos que tivessem uma relação com o criar. Então, por um período, comecei a ter o interesse por moda. Na época tinha comprado uma máquina de costura e fiz um curso de Modelagem no Senac; depois fiz um curso técnico em Comunicação Visual; oficinas de filmagem – pois sempre tive interesse no audiovisual –, pois tinha o desejo de criar curta metragens (e ainda tenho). E, quando tinha tempo sobrando, aproveitava os cursos livres de desenho que o SESC oferecia.
Em 2016, comecei a trabalhar como vendedora numa loja de materiais artísticos em São Paulo. Quando entrei lá, não entendia sobre materiais, não sabia os tipos de tintas. Para mim era tudo novidade mas tinha muito interesse em aprender. Todos os dias via cores, até que só de olhar, já sabia identificá-las.
Tive o privilégio de absorver ensinamentos técnicos sobre cada tipo de material, técnicas de pinturas e um pouco de restauração, através do senhor Alberto, que trabalha há anos na empresa. Também pude aprender lendo livros e tirando dúvidas com artistas e clientes. Depois passei a trabalhar como Assistente de Arte, no ateliê que ficava no subsolo da loja. Lá, artistas e professores ministravam cursos e oficinas. Estar próxima dessas aulas, mesmo que trabalhando, me proporcionou muitas ideias e aprendizados. Os professores e artistas que pude acompanhar foram: Apolo Torres, Carolina Caliento, Pinky Wainer, entre outros.
Sempre quis trabalhar com arte mas antes não tinha referências por perto de pessoas que realmente viviam dessa função. Então, por um tempo tinha abandonado a ideia de viver das minhas pinturas e pensava em estudar outras formas de estar no mercado de trabalho, fazendo algo que envolvesse a criatividade. A escolha de trabalhar como artista e seguir este caminho, surgiu no momento da pandemia.
Ainda trabalhando como assistente de arte, na pandemia, comecei a trabalhar home office e bem nesse momento eu havia acabado de me mudar da casa da minha mãe. Trabalhando em casa, acabei tendo mais tempo para estudar e produzir. A pandemia também me causava esse desejo de criar, como uma válvula de escape.
Quando comecei a mostrar as minhas produções no Instagram, muitas pessoas começaram a se interessar em comprar o meu trabalho. Eu publicava sem intenção de venda. Na verdade, não imagina que esse interesse aconteceria.
Com o apoio da minha mãe e de meu companheiro, me vi em um momento crucial de decisão entre o emprego CLT com carteira assinada e trabalhar como artista. Como já estava desmotivada com o emprego e arte já estava me trazendo outras oportunidades, achei que esse era o momento. Não foi fácil. Tive muito medo, ansiedade e insegurança.
Não quero que as pessoas pensem que a pandemia me proporcionou viver como artista. Sinto que, na verdade, eu só precisava de tempo para poder pintar e mostrar tudo o que estava dentro de mim. Antes, não tinha tempo e quando tinha tempo, não tinha espaço. Há determinadas situações que limitam o artista a criar.
Como você começou a pintar? Quais eram as suas temáticas no início da sua produção?
Bom, para eu poder responder a essas perguntas, primeiramente preciso falar do meu primeiro contato com a arte e como ele influenciou as escolhas das minhas temáticas de trabalho daquela época. Considero que o primeiro contato com a arte aconteceu quando me deparei com grafites nas ruas. Eu tinha 12 anos e pensei, “poxa é isso o que eu quero fazer”. Então eu desenhava bastante com (lápis) grafite sobre papel. Em seguida, iniciei a pintura e aos 14 anos, em 2009, quando a minha mãe começou a trabalhar “de limpeza” em uma loja que tinha aqui perto de casa e que vendia materiais para artesanato. Como a minha mãe tinha desconto por ser funcionária, aproveitava para comprar lá. E aí eu comprava tinta acrílica e tinta à óleo mas eu não sabia muito bem como utilizar esses materiais, então às vezes eu tentava misturar os dois e não entendia bem por que não se misturavam.
Como mencionei anteriormente, minha maior referência naquela época eram os grafites, que influenciavam muito na escolha do meu tema de trabalho. Eu achava que no grafite eu precisava ter um personagem, sabe? Um deles era o coelho rosa, que usava calça jeans. Ele não tinha um significado especial, mas eu sempre o desenhava e fazia experimentações dos materiais na parede do meu quarto. Pois como eu queria ser grafiteira, todas as minhas pinturas e desenhos eram feitos na parede.
Depois decidi me aproximar do desenho mais realista. E o que eu conseguia fazer mais próximo do real era a figura do olho. Era um desenho muito próximo do real. Como eu não tinha acesso à internet, ou até mesmo a livros – era difícil achar livros de desenho para iniciantes na biblioteca – tudo que eu fazia era muito “na raça”, e eu não entendia que para você chegar em um nível considerado de “perfeição” de um desenho realista, se leva muito tempo, então eu desenhava bastante esses olhos, coisas da natureza e esse personagem que eu queria trazer para o grafite.
Como você descreve a evolução das suas pinturas?
A evolução das minhas pinturas começa com a aceitação do meu traço, de me permitir errar e me descobrir através disso. Ela acontece também quando conheço novas referências de artistas – em especial artistas afro diaspóricos e quando trago minhas subjetividades para a tela.
Houve um período desse processo de aceitação em que eu preferi seguir o caminho da fotografia. Eu me sentia frustrada por não conseguir produzir as imagens realistas como eu queria no desenho. Então fazia retratos e fotografias de rua, mas não teve jeito (risos), a pintura me chamou de volta. Porém, ainda amo fotografar. A fotografia me trouxe um olhar mais sensível para as coisas ao meu redor.
Quais temas têm te acompanhado desde o início de sua produção? E quais passaram a estar presentes na sua pesquisa mais recentemente?
Não há nada que se compare com o que eu fazia antes, que era uma imagem que eu gostaria de trazer para o real, ou um personagem que eu gostaria de trazer para o grafite. Nada disso se compara com o que eu faço hoje mas posso contar como tudo isso aconteceu, como comecei a trazer essas imagens que estão presentes hoje na minha produção.
Os temas presentes em minhas pesquisas, começam aparecer a partir do momento em que passo a me enxergar como uma pessoa não branca, uma pessoa afro diaspórica. Quando essa chave virou para mim, pude reconhecer que vários problemas que a minha família sofreu estão relacionados ao racismo e ao machismo. E isso me deixou muita dor, mas foi necessário.
Saber o que as pessoas da minha família já passaram na vida e o que eu vivi, principalmente na minha infância, tem muito a ver com o que vivemos no Brasil. Senti que precisava colocar isso no meu trabalho, sabe? Talvez como uma forma de cicatrizar essa ferida que se abriu. E é por isso que trago em minhas pinturas personagens racializados, porque representam pessoas dos lugares de onde cresci.
Quando abordo temas de afeto, por exemplo, vejo como um desejo de ter presenciado esses momentos entre essas pessoas. Também busco resgatar e materializar momentos de afeto que tive com minha mãe e com minha avó. Então, no geral, posso dizer que atualmente, através do meu trabalho, falo sobre maternidade, afeto, ancestralidade, cotidiano e subjetividades pessoais.
Além da pintura, quais linguagens você faz uso como artista visual?
Além da pintura, minhas linguagens de pesquisa são: aquarela, aplicações, bordado e fotografia. A aquarela venho estudando aos poucos pois é uma técnica que requer muita prática e eu pretendo estudar mais. Venho pesquisando diferentes tipos de aplicações de pequenos objetos sobre a tela e trouxe essa pesquisa para a minha primeira exposição individual –Pertencimento –, onde fiz aplicações de búzios, viés de costura e espelhos em algumas das obras. O bordado aparece normalmente junto à figura da mão protetora em minhas pinturas. E com relação à fotografia, às vezes me fotografo para usar como referência no desenho.
E quando foi que você se reconheceu como artista?
Olha, levou um tempinho para eu me reconhecer como artista, porque eu havia saído do meu emprego para mergulhar nesse universo. Quando saí eu pensei “será que eu devo continuar?” Tive bastante insegurança devido ao que estamos vivendo atualmente no Brasil e também porque não tinha estabilidade financeira. Levou um tempo. Eu me reconheci como artista quando aceitei que eu merecia estar vivendo isso.
Teve alguma experiência na sua infância que você acredita que se relacione com o que você produz hoje como artista?
A minha infância tem total referência no que produzo. E, venho percebendo isso. Ela vem inconscientemente. Eu era uma criança que vivia às margens. E acho que o que me "salvou" foi a imaginação e a fé que tinha dentro de mim. Qualquer coisa virava um amuleto, amava ir nos terreiros e nos centros espíritas com a minha mãe.
Quais foram os maiores desafios enfrentados na sua trajetória até agora?
Sou uma pessoa tímida. Na verdade, já fui silenciada tantas vezes! Ainda tenho conflitos sobre isso. Mas os meus desafios estão sendo o contato com as pessoas, o aparecimento. O meu maior desafio nessa trajetória, foi voltar a pintar. Durante um período, havia desistido da pintura e tinha dado início à fotografia.
O que você faz para se motivar em períodos de baixa/desânimo/bloqueio criativo?
Acho que o melhor a se fazer nesses momentos, é não forçar. Leio um livro, assisto algum filme ou documentário. Acho que se alimentar de arte e informações sobre, ajuda a despertar ideias.
Como você se vê hoje?
Como eu me vejo hoje (risos)! Bom, acho que me vejo mais forte pois através da pintura pude cicatrizar algumas feridas que eu tinha dentro de mim e pude alcançar autoconhecimento sobre algumas questões também. Então, de modo geral, me vejo mais forte.
Como é a sua rotina de trabalho?
Minha rotina de pintura funciona assim: antes de começar a pintar eu gosto de deixar o ambiente organizado, organizar a casa e resolver tudo que tenho para resolver no dia, antes de começar a pintura. Enquanto pinto, não gosto de pensar em coisas que tenho para fazer ou que tenho um compromisso. A sensação de estar livre para produzir, faz com que eu me debruce sobre a pintura. Eu gosto muito de escutar música, relaxar e pintar.
Como você começa a pintar? O que vem primeiro? A ideia, o título? Como funciona seu processo?
Eu adoro começar a pintura já com o título na cabeça (risos). Mas às vezes são os dois, a ideia do desenho e o título.
Quando tenho a ideia, faço o esboço direto na tela. E daí esse desenho vai se transformando em outras coisas, nunca fica igual à ideia original, principalmente porque a emoção vai tomando conta e eu me permito. Gosto da surpresa e da descoberta que o intuitivo me traz.
Gosto de iniciar a pintura com o título em mente, porque ela me orienta a sentir e seguir determinado assunto. Geralmente, o processo da criação do título surge numa conversa, lembrança ou até mesmo em uma epifania. Resumindo: eu me jogo na tela!
Como foi produzir a sua primeira exposição individual? O que ela significou para você? Como foi o processo de concepção das pinturas? Quais obras foram as mais marcantes?
Produzir a minha primeira exposição individual foi uma surpresa muito grande e uma oportunidade de mergulhar em ideias que já pensava em trazer para o meu trabalho, desde a memória à técnica de pintura. Cada vez que pinto tenho uma descoberta sobre mim mesma. A experiência de produzir 15 obras e olhar uma ao lado da outra, num espaço amplo, deu mais sentido ao título da exposição: Pertencimento.
O processo de criação das obras foi uma mistura do intuitivo com o consciente. Pintava sem saber qual direção tomar. O consciente estava presente nas ideias que já havia estudado. Mas mesmo com as ideias, o intuitivo também estava lá. É muito engraçado esse processo!
Quis trazer para essa exposição, todos os estilos de desenho e pintura que faço. Desde o uso de folhas de ouro, formatos diferentes de tela, bordado, tonalidades e nuances dos tons de pele de meus personagens. Aproveitei esse momento para experimentar a técnica de aplicações, onde em algumas obras utilizo búzios, pequenos espelhos e viés de costura.
Para mim as obras mais marcantes são: A escolha perfeita – onde represento eu e minha avó escolhendo feijão para cozinhar. Era um hábito corriqueiro entre nós. E nesses momentos ela contava histórias, falávamos sobre diversas coisas. Ela cozinhava tão bem! Outra que me marcou muito, foi a obra A reza da mãe. Fiz essa pintura pensando em minha mãe e em todas as mães solo que já conheci. Não é fácil ser mãe solo nesse país, ainda mais sendo pobre e racializada. Para essas mulheres, às vezes, a solução para as dificuldades se encontra na fé.
Como essa noção de pertencimento que está presente no título da exposição permeia as obras?
O pertencimento está presente nessas obras quando represento momentos que vivi e cenas que gostaria de ter visto no lugar onde cresci. Ele está presente na troca de afeto, está na brincadeira entre crianças, numa transição capilar, na memória e quando mergulhamos em nossas raízes ancestrais.
O que você quer fazer de hoje em diante no seu trabalho? Quais são suas perspectivas a médio e longo prazo? Como se vê daqui um tempo?
Olha, estou pensando numa série focada nas histórias dos orixás e como eles atuam na vida das pessoas, trazendo também o elemento da mão protetora, dando origem e significado a ela.
Você considera o seu trabalho político?
Sim! O meu trabalho é político. A partir do momento em que eu represento pessoas racializadas no meu trabalho e quando eu trago questões que, de alguma forma, trazem evidências sociais em que eu e a minha família vivenciamos.
O que você diria para uma jovem artista negra?
Primeiramente eu diria para ela, não ter medo de se arriscar e errar. Aprendemos muito com o erro. Algumas técnicas que trago para o meu trabalho surgiram através do ‘’erro’’. O medo limita. Outra coisa que diria também: trabalhe com a sua verdade,com suas vivências e com aquilo que você acredita. Eu acho que isso é o que torna cada trabalho único.
Para finalizar, que mulheres (artistas, escritoras, familiares e figuras públicas) foram/são influências e fonte de inspiração?
Primeiramente, as mulheres que me inspiram são as matriarcas da minha pequena família (risos) minha avó Maria de Lourdes ( já falecida) e mãe Isa Clementino. Elas são influência de mulheres destemidas, para mim.
Artistas que são minha fonte de inspiração e influência, são: Frida Kahlo, Emma Amos, Rosana Paulino, Louise Bourgeois, Jess Vieira, Mayara Amaral, Mariana Rodrigues, Lais Amaral, Renata Felinto, Igi Ayedun, Maria Auxiliadora, Maya Angelou, Conceição Evaristo, Castiel Vitorino, entre outras tantas!