Manuela Costa Lima: Sistemas Abertos – Fidalga 175
Manuela Costa Lima
Sistemas Abertos
Um organismo é um sistema aberto no qual a informação flui para o ambiente e vice-versa. Em síntese, cada ser troca com o mundo que o rodeia os elementos que lhe permitem sobrevive.
Este excerto de autoria do professor e botânico italiano, Stefano Mancuso em A Revolução das Plantas poderia ser utilizado para descrever os trabalhos realizados por Manuela Costa Lima durante sua residência no galpão Fidalga 175. Como um organismo vivo, eles se conectam e permeiam o espaço, adquirindo seus elementos e características definidoras, ao mesmo tempo em que alteram-no em sua percepção. Segundo Mancuso, a comunicação é essencial à vida, pois sem ela, os organismos "não teriam a possibilidade de manter o equilíbrio delicado que representa a própria vida."
A prática artística de Manuela Costa Lima se dá de maneira relacional e experimental. Caminhadas, deambulações e uma exploração ativa dos locais por onde passa são características intrínsecas ao seu trabalho, bem como a relação com o tempo e com a imprevisibilidade, sempre questionando a lógica racional definidora dos espaços e da cidade. Ao ocupar o galpão localizado no número 175 da Rua Fidalga, na Vila Madalena, a artista ampliou sua pesquisa e os procedimentos já característicos de sua prática; e, como em um sistema aberto, apropriou-se do espaço e foi contaminada por ele.
Em uma das primeiras conversas que acompanharam o período de residência da Manuela, a artista nos conta sobre um filme que tinha recém assistido: Burial (2022), um documentário – que esbarra na ficção científica –, de Emilija Skarnulyte. O filme examina o impacto da produção de energia nuclear e a desativação da Usina Nuclear de Ignalina, a mais poderosa do planeta à sua época, na cidade lituana de Visaginas. Com o desastre de Chernobyl, e como um acordo para a entrada do país na União Européia, Ignalina começou a ser desativada, na busca por enterrar o que não pode ser enterrado. Daí o título do filme, burial é o termo em inglês para enterro ou sepultamento.
Não por acaso, um dos principais processos realizados pela artista durante o período em que ocupou o galpão foi uma espécie arqueologia do local: a artista se dedicou a escavar e a retirar detritos que ocupavam a construção – que funcionou como um estacionamento por alguns anos, e conta com uma pequena área verde nos fundos, bem como parte de uma construção inacabada. O que estaria sepultado sob o entulho ainda presente no galpão?
A partir destas ações, Manuela Costa Lima encontrou objetos que evidenciam o uso anterior do espaço: luminosos, bobinas de papel, flanelas, placas de sinalização e outros elementos foram cuidadosamente recolhidos e organizados pela artista, dando origem a Shopping Chão (2023), título que remete ao comércio informal realizado nos arredores da feira de antiguidades na Praça XV, no Rio de Janeiro. Cria-se uma espécie de sítio arqueológico, no qual o visitante pode, através dos objetos enfileirados, identificar usos, imaginar narrativas possíveis sobre a natureza do espaço e sobre aqueles que estiveram ali.
Esse aspecto arqueológico, de descoberta e coleta de materiais, que acompanha o processo de Manuela Costa Lima desde o início de sua prática artística, está presente também na instalação site-specific Cortina de Ferro (2023), trabalho que foi o ponto de partida para a ocupação do galpão, composto por grades e portões de diferentes cores e tamanhos organizados em duas fileiras, e que servem como um anteparo ao olhar do espectador que adentra o espaço, alterando a percepção deste.
O título do trabalho faz referência ao bloco de países que, durante a Guerra Fria, alinhavam-se à União Soviética. Mais uma vez, nos voltamos ao contexto histórico e geográfico retratado no filme Burial: a Lituânia, na qual se ergue a grande usina nuclear retratada no filme, era parte deste bloco e a usina era parte de uma demonstração do poder e da tecnologia do regime socialista. Com sua desativação, a estrutura colossal vai sendo tomada pelas forças externas do ambiente, pelos organismos vivos.
O embate entre o construído, o racional, a ordem e o natural, orgânico e vivo é um dos pontos-chave para a leitura da poética de Manuela Costa Lima: "Muitos trabalhos meus partem desse cruzamento, dessa intersecção entre coisa viva, caótica e entrópica e a grelha ordenadora, usada para construir e que definem, para mim, a cidade." Manuela Costa Lima desloca e transforma. Em Éden (2023), por exemplo, ela cria, dentro de um luminoso de estacionamento recolhido no local, um microbioma, composto por terra, galhos de árvores encontradas no local, um vaporizador de água e uma lâmpada de LED. A aposta é que, ao criar esse sistema vivo, o galho possa crescer dentro do caixote precário.
Também dentro deste mesmo raciocínio, Manuela instala, em distintos pontos do espaço, os trabalhos da série Infiltrados (2016 – em andamento). Os elementos lineares, feitos de lâmpadas led tubulares são como organismos vivos que se apropriam dos locais onde se inserem, criam circuitos que se infiltram na arquitetura e transpassam os limites entre público e privado. No contexto do galpão Fidalga 175, eles também conduzem o visitante em um percurso pelo espaço, que acompanha os feixes luminosos e fios desde a entrada do galpão até o jardim aos fundos.
Através de um fio que passa pelo Shopping Chão e sobe para a laje do pavimento superior da construção, somos conduzidos ao jardim, onde podemos ver mais uma escultura luminosa colocada em um poste de concreto, encoberto pela vegetação. De lá, o fio chega ao seu último ponto: um buraco pré-existente no jardim do espaço, descoberto pela artista em suas escavações e agora iluminado por ela. Esta última dupla de Infiltrados do jardim remete aos trabalhos realizados pela artista em 2017 para uma mostra no Consulado Geral de Portugal no Brasil: na ocasião, ela instalou trabalhos da série em buracos que cavou no formato negativo dos paralelepípedos que encontrou diversas vezes ao longo da caminhada pelo Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha.
Manuela Costa Lima cria sistemas. Os trabalhos desenvolvidos durante o período de residência no Fidalga 175 se conectam não só entre si, traçando uma narrativa e um percurso, como também relacionam-se com toda sua prática artística desenvolvida ao longo dos anos. É como se nesse momento de retomada – após gerar e criar uma vida –, Manuela fizesse uma arqueologia de sua própria pesquisa, repensando e ressignificando o trabalho para que ele pudesse se nutrir, ganhar força e crescer, como um organismo vivo.
Texto : Paula Plee
Acompanhamento curatorial da residência : Paula Plee, Ana Roman e Victor Lacerda
Colaboração e edição : Ana Roman