Perfil | Sheyla Ayo
Conhecemos a artista Sheyla Ayo na ocasião do Mergulhos da Piscina, evento que realizamos em novembro de 2019 e no qual convidamos coletivos, dentre eles o Trovoa, do qual Sheyla faz parte, para debatermos as possibilidades de se atuar em rede.
Depois disso, passamos a acompanhar o trabalho da Sheyla pelas redes e ficamos cada vez mais interessadas. O instagram, porém, não costuma dar conta de saciar toda a nossa curiosidade e nos permite conhecer apenas um fragmento superficial dos trabalhos das artistas. Convidamos Sheyla então, a nos contar um pouco sobre sua trajetória e sobre seus trabalhos em desenvolvimento.
Sheyla Ayo nasceu em Guarulhos e atualmente reside em sua casa-ateliê, em Santo André, na Grande São Paulo. A artista trabalha com múltiplos suportes: fotografia, pintura, ilustração, bordado, performance e possui formação em Artes Visuais e pós-graduação em História da Arte pela PUC-SP. Ao longo de sua carreira de mais de uma década participou de diversas exposições e coletivos artísticos. Em seus trabalhos utiliza a linguagem pictórica, mesclada com performances. Sua pesquisa está relacionada ao feminino e às memórias afetivas, em constante diálogo com a natureza através da produção de formas orgânicas.
Você pode contar um pouco sobre sua formação e trajetória? Como se deu a escolha de trabalhar como artista?
As minhas práticas se iniciaram na infância. Meus pais trabalhavam fora e eu sempre fui cuidada pela minha vó. Meu pai trabalhava como pintor de casas e tenho a memória dele chegando sujo de tinta do trabalho, as cores e as formas impressas na sua roupa suja me interessavam bastante. Na época eu devia ter por volta de 6 anos. Como tinha poucos brinquedos, criar meu mundo sempre foi mais interessante e mais divertido. Lápis de cor e papel em branco eram meus brinquedos preferidos. Acho que a vida e as condições que a minha família tinham no momento escolheram para mim e eu sou muito grata por isto.
Sobre a escolha de ser artista, não sei se a gente decide, acho que nascemos assim, com a necessidade de refazer, de repensar nosso mundo. E o gosto por criar me acompanhou por toda vida, então eu acho que nasci artista, não foi decisão, foi nascimento mesmo.
Qual sua pesquisa atual e que trabalhos você tem desenvolvido nos últimos tempos? Como você começou a pintar sobre tecido? E o bordado, como entrou na sua produção?
A minha pesquisa atual dialoga com a pintura e o desenho, fotografia e bordado. Dialogo com o mundo através das minhas formas orgânicas, entre o trânsito do nascer e renascer, do brotar e do florescer.
Comecei a pintar na faculdade e essa proximidade com o material foi bastante apropriada, primeiro pela necessidade, por ser um material mais barato e acessível. O tecido, a tela me atraem bastante pois tenho facilidade de trabalhar com eles. O bordado chegou no meu trabalho como um resgate, como uma memória. Eu lembro muitas vezes quando minha vó sentava na sala para coser – no interior a gente chama coser de costurar, remendar as roupas – e ela fazia um remendo tão bonito, uma coisa tão refinada e aquilo foi me inundando e fui trazendo isso comigo mas nunca tinha feito um trabalho tridimensional. Tenho feito alguns experimentos com bordados mas por enquanto ainda são inéditos, estou gestando esses trabalhos e fazendo-os com calma, trazendo essas memórias da minha vó para o bordado.
Quais fatos, trabalhos ou experiências mais relevantes/marcantes contribuíram ou afetaram de alguma forma a sua trajetória?
Um dos fatos que posso citar foi a performance OMIM realizada em 2019 no SESC - Pinheiros. Foi a primeira vez que ressignifiquei a minha pintura e criei uma interação, um dialogo com as pessoas que estavam assistindo a minha impressão sobre o tecido, que eu chamei de "pintura feitiço". Foi um trabalho impactante. Tinham poucas pessoas presentes, mas que trouxeram uma energia muito bacana para a performance. A ideia era que o público ficasse acompanhando a minha prática, meus gestos e que através deles, eu conseguisse fazer com que as pessoas observassem a mão preta não como ferramenta de trabalho, para fazer coisas para outras pessoas, mas uma mão preta que cria, que produz beleza. Uma beleza para além da estética do corpo estereotipado, mas a beleza presente no pintar e no desejo de criar para fora. Esse foi o objetivo da "pintura feitiço", trazer à tona a discussão de mãos negras, de artistas negras, mulheres negras produzindo em um espaço aberto, para que todos ali pudessem ver que nós podemos produzir arte.
Como é esse processo que você chamou de ‘pintura feitiço’? Como isso se dá enquanto você está produzindo?
A performance eu criei a partir de algumas memórias, dos transes que eu tenho no candomblé, de quando estou incorporada, que também é um outro resgate espiritual, ancestral. A partir desses transes, desses movimentos, eu crio minhas experiências pictóricas. Esse transe nada mais é que uma busca pela ancestralidade. No caso, eu, mulher negra, tenho muita vontade e muita sede de saber de onde eu vim. Eu ficava muito indagada com isso, sempre me perguntando sobre as minhas origens. Eu sei que eu tenho uma vó materna, uma avó paterna, mas e meus bisavós? E meus tataravós, meus tetravós? As pessoas brancas têm mais facilidade de encontrar a sua ancestralidade. Já nós, tivemos um apagamento proposital da nossa história. Então a sensação de quando eu pinto essas linhas, de estar no transe, é de estar tentando nadar, mergulhar e dar longas braçadas para chegar a algum lugar. Porque temos a sensação de não pertencer a lugar nenhum, por mais que a gente tente saber de onde viemos, isso fica muito difícil por conta do silenciamento e do apagamento que o povo negro teve.
No que normalmente você pensa quando está produzindo?
Eu penso geralmente em coisas que me tranquilizam. As pessoas riem quando elas veem meus stories no instagram, porque eu gosto de dividir. É como se as pessoas estivessem junto comigo aqui no meu lar-ateliê, que é tão modesto, tão pequeno e é dentro dessa simplicidade que eu vou criando as minhas coisas. Então geralmente ou estou pensando em nada, ou em como aquele trabalho vai ficar. Penso em quem vai comprar, como essa pessoa vai se sentir quando ela estiver diante desse trabalho. Penso em qual a mensagem que esse trabalho vai levar para dentro das pessoas, para os ambientes. É um trabalho de inundação, assim como água, como um líquido mágico, eu penso em inundar as pessoas com o que eu faço.
Como é um dia normal no seu ateliê?
As pessoas geralmente ficam curiosas pois a gente a noção de artistas trabalhando em grandes ateliês, de espaços inusitados. Mas meu ateliê é um espaço normal, eu moro aqui. Então às vezes acordo cedo, às vezes não. Às vezes trabalho na parte da tarde, às vezes à noite ou de madrugada. Não tenho uma rotina fixa para produzir. Eu gosto de tomar café, almoçar. Muitas vezes eu preparo minha própria comida, tenho esse cuidado de preparar meu próprio alimento pois não gosto de comprar coisa da rua. Eu tenho uma bancada simples, uma mesa e eu vou produzindo com poucos pinceis e tintas, vou esticando os tecidos. Os tecidos mais finos, com uma trama mais aberta, eu faço uma preparação com uma selagem anterior. Daí faço a preparação de tecidos, espero secar e começo a trabalhar.
Quais os trabalhos foram mais marcantes?
Um trabalho marcante foi a série de pinturas que realizei para a exposição coletiva TUDO QUE FLUI EM TUDO QUE VIVE, no Solar dos Abacaxis, no Rio de Janeiro (com curadoria de Keyna Eleison e Ana Clara Simões Lopes ) e que teve a participação de artistas como a Juliana dos Santos e a Marcela Cantuária. Foi a primeira vez que fui convidada para expor em outro estado em uma cena artística diferente do que eu estou acostumada. Gosto muito das coisas que estão sendo produzidas no Rio de Janeiro. Fiz alguns amigos, conheci produções de outras artistas mulheres e mulheres trans.
O trabalho que eu apresentei lá se chama “Lagrimas da mãe”, que são pequenas pinturas e desenhos em lenços de bolso masculinos. Tudo começou porque um dia eu estava no centro aqui de Santo André e fui em uma loja de armarinho e em uma prateleira vi esses lenços de bolso. E eles me chamaram a atenção porque tinham embalagens exuberantes e palavras de incentivo, como por exemplo “vitória”, “força”. E os lenços femininos estavam mais abaixo nas prateleiras e os lenços tinham nas embalagens palavras como “mimosa”, “delicada”. E então eu comecei a pensar nessa diferenciação entre o que é feminino e o que é masculino e eu fiz esses desenhos de lágrimas femininas em lenços masculinos. Me lembrei de algo que a minha vó dizia sobre antigamente o fato de um homem dar um lenço para uma mulher em um baile ser sinal de delicadeza, beleza, de amor. Então a ideia era fazer uma instalação bem grande desses trabalhos mas ali no Solar dos Abacaxis eu coloquei apenas um fragmento desta série.
Quais são suas perspectivas? Como se vê daqui um tempo? Tem algum projeto que deseja realizar mais a longo prazo?
Eu tenho muitos projetos em pauta, outros mais a longo prazo. Ultimamente tenho produzido bastante alguns trabalhos de médio porte, mesclando pintura, bordado e fotografia.
Que mulheres (artistas, escritoras, familiares e figuras públicas) foram/são influências e fonte de inspiração?
São tantas pessoas! Porque enquanto artista, gosto de dividir, de contar, de sentir o trabalho pelos olhos de outras pessoas. E tiveram algumas delas dentro desse processo que me ajudaram muito a formalizar o que estou produzindo, sugerindo ideias, passando por processos pessoais junto comigo, que me incentivam e me fazem crescer como mulher e como artista. A minha mãe de santo me ajuda muito e me fortalece; tem a Rosana Paulino que além de ser uma artista que admiro muito, fomos nos aproximando e criamos uma coletividade e amizade muito gostosa e bacana; tem também a Lídia Lisboa e as meninas do coletivo Trovoa, que a gente acabou criando uma forma de interagir que ultrapassa a criação artística e chega no âmbito da amizade. Essas são pessoas que me fortalecem bastante.
Como a pandemia impactou a sua rotina como artista? Quais foram as principais mudanças?
A pandemia chegou para que repensássemos nossas práticas como artistas, como seres humanos, como cidadãos dentro desse país. E imagino que impactou não só a mim mas a muita gente. Nós do Trovoa estávamos com um projeto no SESC Santana e outras coisas que estávamos fazendo e tivemos que parar com tudo. Impactou também porque eu tinha facilidade para comprar alguns materiais e eu tive que dar uma parada na produção ou comprar pela internet, o que trouxe alguns problemas com a entrega. Uns dias eu estava aqui super produzindo e outros dias eu não queria saber de nada, teve dias que perdi a noção do tempo, exatamente por não sair de casa, ficando varias horas na internet. Mas de modo geral, para mim, a pandemia tem sido um processo de aprimoramento como ser humano e espero que gente comece a repensar.
E quais foram os principais desafios que você enfrentou na sua trajetória até agora?
Quando a gente fala sobre desafios para pessoas pretas, a gente fala de desafios cotidianos, até para sobreviver e estar vivo em um país que tem uma politica higienista, genocida e misógina. Fora isso, a gente tem que enfrentar o desafio do mercado de arte, de entender esse processo e principalmente o meu processo, que nasce da ancestralidade preta, de uma forma mais rústica. Tem a questão das políticas sociais e micropolíticas dentro das pinceladas, meu corpo é politico e são desafios tremendos e cotidianos.