Perfil | Clara Benfatti
Clara Benfatti é uma das artistas que conhecemos durante a pandemia através do Instagram. À princípio, nos chamaram atenção suas Ilhas, desenvolvidas juntamente com um diário da quarentena, em que a artista desenha uma ilha por dia e compartilha um relato sobre seu cotidiano durante este período.
Ao conhecer mais de sua obra, porém, vemos que sua pesquisa se estende para muito além das cartografias do isolamento e traz um olhar perspicaz sobre a cidade e sobre como vivenciamos seus espaços, seja no âmbito público da rua ou no âmbito privado dos cômodos da casa e dos objetos que nos habitam.
A breve passagem pelo curso de arquitetura se evidencia não só através do seu olhar, mas também através das técnicas empregadas em muitos de seus trabalhos e principalmente pelos modos de representação escolhidos. Outra influência evidente vem do cinema, área na qual atuou durante anos e de onde vem o senso narrativo que permeia sua obra.
Nascida em 1984, em Paris, na França, Clara se mudou para São Paulo ainda bebê, onde graduou-se em Artes Plásticas na Faculdade Armando Álvares Penteado – FAAP e viveu até ir morar na cidade do Porto, em Portugal, onde concluiu o mestrado em Artes Plásticas em 2019. Atualmente a artista divide-se entre as duas cidades.
Na entrevista abaixo, Clara nos conta sobre sua trajetória, seus desafios, trabalhos mais marcantes e principais influências:
Você pode contar um pouco sobre sua formação e trajetória? Como se deu a escolha de trabalhar como artista?
Quando eu estava no colégio, eu queria trabalhar com direção de arte pra cinema, mas achava que a faculdade de cinema era muito mais voltada pra quem queria trabalhar com direção, fotografia, roteiro. Então decidi que eu ia fazer arquitetura pra criar uma base mais sólida pra construção de cenários. Em um mês de faculdade, eu percebi que aquilo também não era o que eu queria, ia pra um outro lado de uma formação muito mais específica do que eu estava buscando. Foi aí que decidi entrar na faculdade de artes plásticas, mas sempre pensando na faculdade como uma forma de me instrumentalizar pra o trabalho no cinema.
No terceiro trimestre da faculdade, eu comecei a trabalhar como estagiária em um longa metragem. No quinto semestre, eu estava trabalhando tanto que acabei largando a faculdade. Passei mais dois anos trabalhando direto, mas chegou um momento que comecei a achar o trabalho com cinema insatisfatório. Eu trabalhava doze horas por dia, seis dias por semana em projetos de outras pessoas e que muitas vezes não eram nem projetos que eu acreditava. Eu comecei a achar que eu tinha mais coisas pra dizer, mas nessa altura eu não sabia bem nem como nem por quê. Depois de anos trabalhando com cinema e certa de que era isso que eu queria fazer, eu fiquei bem perdida. Foi aí que eu decidi voltar pra faculdade e, como eu não tinha mais aquele plano focado de trabalhar no cinema que eu sempre tinha tido, percebi que realmente queria ser artista.
Qual sua pesquisa atual e que trabalhos você tem desenvolvido nos últimos tempos?
Tenho trabalhado muito a relação do ser humano com a cidade, mas trazendo essa questão pra um lado muito pessoal, pensando possíveis formas do meu corpo ocupar o espaço da cidade. Eu tenho um projeto em andamento, que já realizei no Porto (e culminou depois na exposição Inventário de percursos banais), que parte dos conceitos de instrução e deambulação. Nesse projeto, eu mando um email pra diversas pessoas pedindo que elas me dêem instruções para percorrer a cidade, e depois eu executo essas instruções. O trabalho acontece em diversas instâncias, na instrução em si, durante o percurso e nos registros que são gerados a partir desses percursos.
Quais fatos, trabalhos ou experiências mais relevantes/marcantes contribuiram ou afetaram de alguma forma a sua trajetória?
Acho que a série de desenhos “cidades brancas” foi um trabalho que marcou um primeiro momento de virada na minha carreira. Foi com ele que eu comecei a entrar em vários salões e foi a partir dele que organizei a minha primeira exposição individual, Outras Cidades na Galeria Zipper. Foi também com esses desenhos que eu comecei a vislumbrar uma possibilidade de viver do fruto do meu trabalho.
Outro momento importante pra mim foi minha mudança de São Paulo para o Porto. Eu trabalhava muito com a cidade enquanto paisagem e acho que o tamanho de São Paulo proporciona isso com muita facilidade, de ver a cidade numa escala macro, mas já fazia um tempo que queria trabalhar a cidade em outra escala, mais pessoal, mais micro. Comecei uns ensaios em São Paulo, mas foi no Porto que consegui mudar mesmo o foco da pesquisa e com isso o trabalho também mudou muito. Minha produção, que era exclusivamente de desenho, começou a ter também fotos, textos.
Quais são suas perspectivas como artista? Como se vê daqui um tempo? Tem algum projeto que deseja realizar mais a longo prazo?
Me vejo trabalhando mais, sempre quero conseguir trabalhar mais. Acabei o mestrado ano passado, então foram dois anos que tive menos tempo de ateliê do que gostaria, quero voltar a prática de ateliê.
Também quero realizar esse projeto de deambulação e deriva em outras cidades, inclusive em São Paulo. Comecei a aplicar pra residências, recebi alguns nãos e daí começou a pandemia. Quero voltar a trabalhar nesse projeto.
Que mulheres (artistas, escritoras, familiares e figuras públicas) foram/são influências e fonte de inspiração?
Todas as mulheres que criaram comigo a rede Blasfêmeas, que foi um projeto de 10 mulheres, artistas e pesquisadoras, onde a gente discutia nossas pesquisas e também inquietações enquanto mulheres dentro das artes plásticas, as artistas Sophie Calle, Yoko Ono, Mira Schendel, Janet Cardiff, Fernanda Gomes, Sara Ramo, a escritora Natalia Ginzburg, a teórica Paola Berenstein Jacques.
O que você faz para se motivar em períodos de baixa/desânimo/bloqueio criativo?
Sempre entro numa espécie de bloqueio criativo quando termino um trabalho. Toda vez parece que vai ser o último. Em geral é a literatura de ficção que me motiva e me inspira nesses momentos. Acho que meu trabalho se relaciona muito com uma construção de narrativas, reais, pessoais, mas também fictícias. Então busco na ficção caminhos e ideias pra essas novas construções. E mesmo que o livro não tenha nada de inspirador, pelo menos foi um momento que eu passei sem pensar diretamente em trabalho, tem uma mudança de foco importante.
Quais foram os maiores desafios enfrentados na sua trajetória até agora?
Um dos meus maiores desafios é a questão financeira. Tentar viver do meu trabalho e conseguir continuar produzindo e ter os meios e o tempo pra isso. Às vezes eu consigo, às vezes não. Às vezes tenho que fazer uns trabalhos mais chatos, que me tomam completamente o tempo, mas pagam as contas por uns meses. Acho que a questão maior é ter que lidar sempre com a instabilidade.
Como você enxerga o papel da sua atuação como mulher artista no cenário artístico atual?
Li recentemente o livro Quem Tem Medo do Feminismo Negro? da Djamila Ribeiro onde em dado momento ela se pergunta se alguém já ouviu falar em literatura masculina. O que ela diz é que não ouvimos falar disso porque homens julgam que a sua literatura, aquilo que eles têm a dizer é universal, enquanto nós falamos de algo específico, quando na verdade é o contrário. A atuação das mulheres e das mulheres negras e de todos os grupos minoritários, é justamente o que amplia o discurso, abrange mais possibilidades de existência além daquela que parte da visão de mundo do homem branco. Então acho que o meu papel como mulher artista reside nisso, nessa tentativa constante de ampliar essas possibilidades de narrativas diversas, mesmo que só um pouquinho.
Um parênteses para falarmos um pouco sobre o momento atual: além da pandemia de covid-19, temos ainda uma crise política e ética no país. Quais foram os impactos e desdobramentos desse momento para você nos âmbitos profissional e emocional?
Estou em casa, na casa da minha mãe, na verdade. Ia voltar pro Porto em março e acabei ficando aqui em São Paulo. Profissionalmente tudo parou, mas tem uma coisa interessante em não poder sair de casa e nem ter nenhuma demanda ou expectativa. Eu comecei a tentar coisas novas, mesmo que reduzidas ao espaço da sala. Comecei a testar uns trabalhos com cor, coisa que eu nunca tinha feito, e a dar muito mais chance ao erro e ao acaso, porque tenho tempo pra isso. Fora isso, estou fazendo uma série de desenhos desse período, um por dia. Desenho uma ilha por dia junto com um relato, ou frase ou sentimento relacionado com aquele dia.
Pessoalmente, vivo num estado de constante ansiedade, mas acho que estamos todos meio assim. Tem semanas que fico bem, tenho esperanças e outras que já acho um sucesso levantar da cama. Medito todos os dias e bebo metade deles (risos).. Passo muito tempo pensando sobre essa ideia que ficam repetindo por aí de que nada será como antes… espero que não, mesmo.
Qual o seu entendimento sobre a necessidade e importância de se ter iniciativas voltadas exclusivamente às mulheres e outros grupos minoritários?
Acho essencial a existência dessas iniciativas pra tentar a começar a equilibrar um sistema que há muito tempo é desigual. Essas iniciativas colocam em evidência as narrativas desses grupos e colaboram pra que eles comecem a fazer parte de uma narrativa universal. Além disso, elas criam redes de apoio entre diferentes agentes no cenário artístico. Essas redes de apoio, grupos e coletivos que tem surgido desses grupos minoritários são algumas das coisas mais interessantes e cheias de potência que eu tenho visto na arte atualmente.