Perfil | Mariana Rodrigues
Conhecemos a artista Mariana Rodrigues na ocasião do Mergulhos da Piscina, evento que realizamos em novembro de 2019 e no qual convidamos coletivos, dentre eles o Trovoa, do qual a Mari faz parte, para debatermos as possibilidades de se atuar em rede, algo que se mostrou ainda mais urgente em tempos de isolamento e pandemia.
Passamos então a acompanhá-la através do Instagram, onde a artista compartilha alguns de seus trabalhos e práticas pessoais que, por sua vez, têm relação direta com suas obras. Felizmente pudemos conversar com a Mari via email e áudio de Whatsapp e assim, saber mais sobre seus processos de criação.
Mariana Rodrigues nasceu em 1995 em Osasco, onde reside. Formada em Design Digital pela Universidade Anhembi Morumbi, Mariana passou a se dedicar à arte ao final de sua graduação. Sua prática pictórica abstrata está ligada ao estudo de práticas corporais e ancestrais nas quais corpo, mente e espirito são compreendidos como uma unidade. Esta percepção atravessa toda sua pesquisa e se materializa através de formas, cores e gestos que vão além de uma compreensão racional. Para a artista, sua pintura é um ritual, resultado de muitos processos internos e espirituais.
Você pode contar um pouco sobre sua formação e trajetória? Como se deu a escolha de trabalhar como artista?
Me graduei em 2018 no curso de Design Digital da Universidade Anhembi Morumbi, área que também atuo. Umas das primeiras memórias que tenho são dos meus cadernos de desenho que iniciei aos 5 anos. Meu pai sempre me influenciou a continuar, desde muito pequena ele me levava a exposições de arte, mesmo que nem ele entendesse sobre arte. Quando eu tinha uns 11 anos ele começou a me presentear com uma coleção de técnicas de desenho que vendia nas bancas, cada mês vinha uma apostila com um material. Ele comprou umas 4 edições dessa pra mim, guardo esse momento no coração pois a partir daí de alguma forma eu me aproximei das técnicas. Cresci entre lápis de cores e tintas e guardo meus cadernos de desenho até hoje. Durante a graduação eu acabei me distanciando do fazer artístico, já que o curso de Design Digital se volta muito para o mercado publicitário e tecnológico. Por anos permaneci trabalhando inerte nos softwares de design e pintando vez ou outra, até que no fim da graduação comecei a explorar esses mesmos softwares a partir de uma outra perspectiva, com um olhar mais artístico e abstrato. Iniciei um processo que chamei de Experimentos e que mesclava colagens digitais e manuais, auto-retratos e pintura. Hoje reconheço o quanto esse período foi importante para estar onde estou agora, foi um processo de me conectar comigo mesma novamente. Nesse mesmo período trabalhei em um estúdio de design aqui em Osasco, do ilustrador Raphael Armando, e foi lá que minha paixão pelo abstrato começou, já que o Raphael me permitia explorar materiais além do computador. Desde então não parei mais.
Você ainda atua como designer? Como se dá essa atuação e como você faz para conciliar o trabalho e o fazer artístico?
Em 2019 tomei a decisão de me desvincular desse estúdio para entender como eu funcionaria de forma autônoma, trabalhando em design e dando mais prioridade e tempo ao meu processo artístico e às pinturas. Por mais que o design tenha um viés artístico, são praticas totalmente diferentes, o que vai de encontro com a maneira que faço para conciliar meu tempo e meu processo artístico. Em alguns momentos, me desdobro mais para trabalhar com design para me manter financeiramente, em outros momentos me dedico mais aos processos artísticos. Normalmente trabalho em projetos e cada um deles tem um período de tempo específico para ocorrer. Coincidentemente, os projetos que eu tenho me envolvido, possuem um cunho artístico e se relacionam com o movimento cultural, como é o caso do Valongo Festival, onde faço a direção artística das peças gráficas. Manter esses dois processos é um desafio diário e são desafios diferentes. Às vezes preciso ficar muito tempo no computador, o que me traz um desgaste mental e muitas vezes eu acabo não conseguindo pintar e desenvolver minha pesquisa artística. A pintura, de uma forma ou de outra, sempre permanece pois me mantenho estudando e os processos artísticos no design também se vinculam com o pictórico presente no meu trabalho, através do estudo das cores, das texturas, das formas e a até a própria diagramação, que é algo que gosto muito. A pintura abstrata vem para mim através de um processo de não racionalização do que estou fazendo. Ao contrario do design, que é uma pratica muito rígida, que a gente precisa racionalizar muito para fazer um projeto.
Qual sua pesquisa atual e que trabalhos você tem desenvolvido nos últimos tempos?
Minha pesquisa se extende pra além do campo da pintura, atravessa minhas práticas como corpo em movimento ligado ao espírito ancestral, para além de movimentos do corpo físico. Atualmente estou estudando Filosofia Africana, Filosofias e práticas de Kemet (uma prática originária do Egito). Me debruço com afinco nas pesquisas de como os povos originários experienciavam o espírito como parte integral de si mesmos. Para eles, não existia separação entre corpo, mente e espírito. Me manter em contato com práticas ancestrais, as quais já nos constituíram integralmente um dia, me leva a processos internos, e esses processos internos se estendem do meu corpo e espírito para a pintura, que é resultado da dança do espírito entre formas, cores, texturas e muito rebuliço interno. Atualmente estou trabalhando mais em projetos de artes gráficas e design. Gosto da versatilidade que as multimídias trazem para o meu trabalho e para minha caminhada, é o que me mantém financeiramente, mas gostaria de ter a estabilidade para focar e dar prioridade à produção das minhas pinturas.
Você mencionou as filosofias e práticas kemet, além de processos internos que se estendem para a pintura. Você pode contar um pouco sobre como a espiritualidade e esses processos se dão no seu dia a dia e como elas influenciam sua prática mais especificamente?
A pintura para mim é parte de muitos processos ritualísticos. Os rituais são espaços sagrados de comunicação com o espírito. Durante a pintura eu crio este espaço para que meu espírito se manifeste por meio dela, não racionalizo. Sou um instrumento do espírito na minha própria pintura. Minha pintura é ritual e o ritual está presente na minha vida diariamente. A pintura é o resultado final de muitos processos espirituais. Com elas eu crio portais de liberação e materialização.
Nas sociedades antigas da África, o que a gente hoje entende como holístico, para eles era natural. Então essa conexão de corpo, mente e espírito não era separada, era unificada e tudo que eles praticavam era espiritual, era ritualístico. E atualmente, como uma mulher africana em diáspora, é essa conexão que tento estabelecer com minha ancestralidade, que por muito tempo foi apagada, roubada e que agora tem esse lugar de retomada, de restauração e de volta pra casa. Então eu vejo a pintura como o processo final de tudo que eu vivencio no meu corpo. Sou praticante de yoga e estou fazendo formação em Hatha Yoga. Esse é um marco importante para que eu consiga acessar camadas de mim mesma e essas camadas criam multi universos durante a pintura, que se conectam com memórias, com sentimentos e emoções. É somente quando finalizo [uma pintura], que sei o que de fato estou fazendo porque durante a pintura eu não sei muito bem o que vai sair. Não faço rascunho, eu simplesmente vou escolhendo as cores e as formas vão saindo e essas formas vão se ligando a outras e, ao mesmo tempo, eu vou me conectando comigo mesma. É um processo de meditação e autoanálise. Tem muitas pessoas que fazem terapia e a pintura para mim é esse lugar de terapia que acaba se tornando autônomo.
Quais fatos, trabalhos ou experiências mais relevantes/marcantes contribuíram ou afetaram de alguma forma a sua trajetória?
O início do levante Nacional Trovoa foi e tem sido um marco muito importante na minha trajetória. Participei da exposição coletiva Noite com curadoria de Keyna Eleison no Centro Cultural Hélio Oiticica, no Rio de Janeiro. A exposição A Noite não adormecerá jamais nos olhos nossos, com curadoria de Carollina Lauriano foi outra experiência que me marcou muito fortemente. Fazer parte desse grupo de mulheres tão plurais na Galeria Baró me deu a consciência dessa retomada e ampliação, um momento histórico na arte contemporânea brasileira. Esse processo me fez entender quão potente é a subjetividade do meu trabalho, me mantendo firme e confiante no caminhar, aberta as infinitas possibilidades de experiências a serem vividas como corpo em movimento.
Quais são suas perspectivas como artista? Como se vê daqui um tempo? Tem algum projeto que deseja realizar mais a longo prazo?
Em um primeiro momento gostaria de me dedicar mais ao aperfeiçoamento da minha pintura, com parte significativa do meu tempo. Não penso muito em futuro como algo a se alcançar, mas penso nele a partir de minhas ações no presente, as decisões e experiências de agora que estão moldando a minha vida no futuro. É um eterno co-criar de realidades. Sou uma pessoa de movimento, viajo pelo Brasil com o intuito de conhecer outras culturas e novas formas de viver diferentes da minha, lugares de natureza abundante que conectam a essa tal essência sagrada. São experiências marcantes do meu ser e que transpassam para a pintura, é algo que com certeza sempre estará presente no meu futuro. Quero sempre conhecer outros artistas e estabelecer trocas de processos e de vida. Quero ter um ateliê, já que atualmente meu ateliê é meu próprio quarto. Quero também fazer mais residências artísticas.
Que mulheres (artistas, escritoras, familiares e figuras públicas) foram/são influências e fonte de inspiração?
Penso na inspiração como algo próximo a mim. Minha principal fonte de inspiração são minhas mães: minha mãe, minha tia e minha avó. Tudo o que alcancei e venho alcançando é por toda a dedicação dessas mulheres na minha construção de ser. Gosto de pensar que eu alcanço o mundo para dar o mundo à elas. É um desafio listar as mulheres que me inspiram, pois é algo constante e infinito. Tabita Rezaire, Hilma af Klint, Tomashi Jackson, Queen Afua, Katiúscia Ribeiro, artistas que acompanho diariamente pelo Instagram, e muitas delas estabeleci amizades importantes, assim como as artistas do Trovoa. Minha inspiração vem de diferentes fontes já que a minha pintura sou eu e todas as experiências que vivo me inspiram de alguma forma.
O que você faz para se motivar em períodos de baixa/desânimo/bloqueio criativo?
Acredito que o bloqueio criativo faz parte do meu processo criativo, porém não o vejo como algo “ruim” mas simplesmente como algo parte dos processos de vazão de sentimentos e emoções. Quando acontece durante a pintura, paro, analiso e medito a própria pintura e eu mesma, buscando de que lugar dentro de mim surge este bloqueio. Geralmente demoro dias até que me sinto preparada para continuar.
Quais foram os maiores desafios enfrentados na sua trajetória até agora?
Os maiores desafios que tenho enfrentado no momento são os de permanência e continuidade, tencionado em trabalhar com design para me manter e investir nas minhas pinturas. O velho dilema de “ter o primeiro emprego pra investir no segundo”.
Como você enxerga o papel da sua atuação como mulher artista no cenário artístico atual?
Minha produção é pautada na minha subjetividade, que se expressa no abstrato. Penso que uma mulher negra fazendo abstrato é um ato político por si só, já que não vejo muitas mulheres artistas negras com produção abstrata, as que tenho como referência hoje são do meu convívio. Sem falar que tenho enfrentado desafios com este campo do sensível no circuito artístico, onde por muitas vezes tive meu trabalho deslegitimado, e de novo por ser uma mulher negra falando da sua própria singularidade.
Um parênteses para falarmos um pouco sobre o momento atual: além da pandemia de covid-19, temos ainda uma crise política e ética no país. Quais foram os impactos e desdobramentos desse momento para você nos âmbitos profissional e emocional?
Se já não bastasse a situação alarmante político-econômica no Brasil, a pandemia chega pra escancarar um estado nação politicamente fraco e desumano. Como muites, fui atravessada em todos os âmbitos da minha vida, entre eles, a minha prática artística. Antes da pandemia iniciei o processo da minha primeira residência artística no Ateliê 397, estava cheia de expectativas por finalmente ter um ateliê que comportasse minha produção e tudo o que poderia surgir a partir disso. Essa ruptura trouxe muitas frustrações que influenciaram minha produção, pintei poucas vezes durante o período de quarentena. Mas por outro lado cresceu meu fluxo de trabalho com design. Também tomei esse momento para muito estudo e agora estou pronta para as pinturas que vão nascer.