Perfil | Paula Scavazzini
Como muitas das artistas que tenho contato, conheci a Paula Scavazzini através do Instagram. Já haviam me recomendado a ver sua individual no Projeto Vênus que, infelizmente, não consegui prestigiar. Assim, Paula me encaminhou um email com informações e imagens da exposições e assim começamos a conversar por email e a convidei para essa entrevista. A entrevista por escrito virou um grande chat e descobrimos várias coisas em comum, como a cidade em que vivemos até os 18 anos e a escolha pela Arquitetura como promessa de um futuro profissional mais “seguro”.
Paula Scavazzini nasceu em 1990, na cidade de São José dos Campos e atualmente vive e trabalha em São Paulo, SP. Sua pesquisa com a pintura passa por retratos, pinturas-objetos e instalações nos quais os personagens e objetos são marcados pela gestualidade e cores vibrantes. Quase como uma reminescência do início de sua formação como arquiteta, suas obras frequentemente se relacionam com o ambiente no qual se inserem seja pela representação de espaços e seus detalhes, seja pela criação de "pinturas-objeto” que se camuflam no espaço expositivo.
Na entrevista abaixo, a artista conta em detalhes sobre sua trajetória, sobre sua pesquisa atual e sobre o desenvolvimento de Estranhamente Familiar, sua primeira individual em uma galeria e que esteve em exibição no Projeto Vênus de janeiro a março de 2022.
Você pode contar um pouco sobre sua formação e trajetória? Como se deu a escolha de trabalhar como artista?
Eu conto como minha formação desde quando eu era bem novinha e ficava horas pintando e desenhando em casa e com a minha avó, nas aulas de arte do colégio e, um pouco mais velha, com uns 11 anos, quando comecei um curso de pintura acadêmica em um clube, junto de várias senhoras de 60 a 70 e tantos anos, em São José dos Campos. Comecei esse curso por recomendação de uma psicóloga, pois eu tinha muito ciúmes da minha mãe na época.
Depois, com 18 anos, me mudei para São Paulo, cursei dois anos de Arquitetura e Urbanismo, no Mackenzie e na Escola da Cidade, e depois me formei bacharel em Artes Plásticas na FAAP e fiz Licenciatura em Educação Artística na Faculdade Santa Marcelina, para ser habilitada para dar aula de Arte para crianças e adolescentes em colégios,.para crianças e adolescentes, em colégios. Durante um ano, então, fui professora de Arte, em escolas públicas e privadas. Em seguida, passei em um concurso da Prefeitura para o mesmo cargo mas, ao mesmo tempo, fui selecionada para uma residência artística, na Cité internationale des Arts, em Paris e optei pela residência. Estive nesta residência, em 2018 e, um ano antes, em outra, na Zaratan, em Lisboa, em 2017.
Participei de dois grupos de acompanhamento de projetos, um deles orientado pelo professor e artista Thiago Honório e o outro, mais focado em pintura, orientado pela professora e artista Regina Parra e pelo artista Rodolpho Parigi. Apresentei algumas exposições individuais em espaços mais institucionais e participei de exposições coletivas.
Em 2019 fui convidada para ser representada pela galeria Projeto Vênus, comandada por Ricardo Sardenberg, onde acabei de apresentar a exposição individual Estranhamente Familiar. Desde então, sigo desenvolvendo o meu trabalho, com alguns projetos futuros, no meu ateliê, em Perdizes.
E como se deu a escolha em ser artista?
Como fui aquela criança bem clichê, que amava ficar horas pintando e desenhando e depois fui fazer aulas de pintura, quando comecei a pensar no que iria estudar na faculdade, escolhi Artes Visuais. No entanto, aconselhada pela minha mãe, comecei a fazer faculdade de Arquitetura e Urbanismo, pois eu imaginava que poderia ser um diploma que me "garantiria" um emprego, mais estável, etc. E, se ainda assim, eu quisesse seguir como artista, também seria possível. Mas não suportei ir até o final da faculdade de Arquitetura e me matriculei em Artes Visuais. Fui muito feliz durante todo o curso, me formei, fui buscando e foram aparecendo outras oportunidades em direção ao "ser artista", de forma que fui conseguindo me manter financeiramente e de maneira prazerosa.
Como foram essas oportunidades que você mencionou em direção do "ser artista"?
Fui me inscrevendo e conseguindo entrar em salões de arte e exposições coletivas, o que me deram uma certa visibilidade e possibilitaram a venda de trabalhos (eu ainda não tinha Instagram), o que me ajudou, por exemplo, a financiar o meu trabalho de graduação. Depois tiveram as seleções para as residências, convites para exposições e o convite para ser representada pela galeria Projeto Vênus.
Quais fatos, trabalhos ou experiências mais relevantes/marcantes contribuíram ou afetaram de alguma forma a sua trajetória?
Em um sentido mais amplo, com certeza as aulas de Arte, no colégio e no clube, além das duas residências artísticas. Foram momentos que eu lembro de sentir sensações parecidas, de um grande mergulho no fazer da pintura e no fazer artístico, sem muitas distrações e sem grandes preocupações. É um misto de prazer, com disponibilidade mental de concentração, quase como uma meditação. E isto me ajudou a ter essas sensações quase como guias e parâmetros para o desenvolvimento do meu trabalho. E é o que colabora para o desenvolvimento do trabalho em si, até hoje. Meu corpo aprendeu como são essas sensações e eu consigo acessá-las, em menor escala, quando estou no ateliê.
Especificamente, a última experiência da exposição individual foi muito prazerosa e importante. Principalmente, porque tive a oportunidade de pensar a totalidade do espaço expositivo como pintura, o espaço como trabalho e não apenas o trabalho inserido em um espaço. Provavelmente, esse tipo de pensamento veio da experiência da faculdade de Arquitetura e, cada vez mais, acho que estou conseguindo elaborar e desenvolver na minha pesquisa artística.
Qual foi o ponto de partida para desenvolver Estranhamente Familiar? E como surgiu a ideia das camisetas que algumas pessoas vestiam durante a abertura?
Para esta exposição, eu criei uma ficção através de uma instalação no interior da galeria, com pinturas sobre tela, pinturas espaciais e pinturas-objetos, a partir do encontro e investigação de um retrato de um casamento dos anos 70, de uma família libanesa imigrada para o Brasil que, aqui tornou-se burguesa e começou a adotar costumes decorativos europeus, que refletiam a sua nova classe social, assim como adotaram muitos dos mais "tradicionais burgueses brasileiros", desde aquela época e até os dias atuais. A exposição foi pensada com um pouco de ironia e humor, História mas, também, com o prazer de pintar e um tipo de "gosto".
Por questões de proximidades estéticas e interesses visuais, como as pesquisas sobre o gênero retrato na contemporaneidade e sobre o interior doméstico, os aspectos decorativos e as suas possíveis leituras no âmbito da Arte, próximos aos das minhas pesquisas artísticas, me apropriei deste retrato e “adotei” esta família como minha, para esta exposição. Eu desenvolvi uma pintura dela, por meio de recursos pictóricos como, a criação de novas visualidades, através de adereços, de distorções, de paleta de cor, de dimensões, de proporções etc. E, quase como forma de “matar a minha própria curiosidade”, utilizando de algum conhecimento espacial adquirido na faculdade de Arquitetura, de aspectos decorativos da tradição francesa, como a “Chinoiserie”, as tapeçarias Gobelin, o abajur estilo Luiz XV, as pratarias tipicamente francesas, os tecidos ornamentados trazidos para o Brasil, por meio da colonização europeia e ainda encontrados no país (mesmo que, muitas vezes, ultra modificados pela reprodução e pelas releituras) e, também, investigados durante a residência artística, em Paris.
E, por fim, estando em pleno confinamento pandêmico, em casa e no ateliê, utilizando de memórias afetivas e trazendo mais informações sobre as personalidades destes personagens criei, também, a casa desta família, uma instalação, dentro da galeria (que, por sua vez, anteriormente, já foi um ambiente realmente doméstico), através de pinturas sobre telas, pinturas-objetos decorativos e de mobiliários (pintura-tapete, pintura-almofada, pintura-jogo, etc) e a pintura do próprio espaço, como o chão listrado de verde e branco e a sala preta, se mesclando às pinturas mais convencionais, as sobre tela.
Com relação às camisetas, tudo começou com o objetivo de democratizar, por assim dizer, (a camiseta branca foi escolhida como base, pois é uma peça básica do vestiário, que possui a finalidade de cobrir e/ou proteger qualquer tipo de corpo) e de aproximar as pinturas, a Arte, da família, de amigues, de conhecides etc, por meio da criação dessas peças utilitárias e bem mais acessíveis, mas tão pintura, quanto às sobre tela. Eu fazia uma pintura-camiseta por semana, aproximadamente, e postava uma selfie vestida com a pintura, nos meus stories, mas sem grandes divulgações, para que o projeto corresse de forma mais orgânica. Quem se interessava encomendava uma pintura-camiseta, no tamanho desejado, no entanto, informado sobre a parte mais divertida, de que pintura seria surpresa e, então, era convidado a participar da "performance", que aconteceria futuramente, durante a abertura da exposição. Como as pinturas-camisetas e as pinturas sobre tela da exposição foram feitas em paralelo, é possível encontrar elementos pictóricos semelhantes, entre elas.
Nesses trabalhos da exposição chama muita atenção essa coisa de trabalhar a espacialidade, a pintura como objeto ou sendo contida no espaço. Foi a primeira vez que você trabalhou a pintura dessa forma? Você já pensou em outros desdobramentos? Instalação?
Não foi a primeira vez. Eu venho pesquisando e trabalhando isso, desde a faculdade de Arquitetura que, principalmente, no primeiro ano, quando eu ainda gostava (risos) fomos aprendendo a pensar e projetar volumes não habitáveis, que podem ser lidos como esculturas, instalados em lugares específicos, como uma instalação e/ou um site specific; passando pelo meu trabalho de graduação em Artes Visuais, cujo o título é Papéis de Parede e/ou Pinturas de Interiores e consiste em um instalação de algumas pinturas de retratos de pessoas do meu convívio íntimo da época, sobre uma grande pintura, sobre papel de parede, ligadas pelas mesclas das padronagens/estamparias escolhidas para cada personagem, projetada em relação à escala do espaço expositivo da Faap, disponibilizado para isso; e que se desdobrou em outros trabalhos; depois, nos projetos desenvolvidos nas residências e em trabalhos ainda mais recentes, anteriores à individual. Todos "pinturas instalativas" e que investigam o conceito de "visão decorativa".
Fez parte da minha formação em Artes, a liberdade de criação, como forma de conhecer e experimentar as possibilidades. E, que eu me atentasse a manter essa liberdade, pelo menos, nos primeiros anos trabalhando como artista. Para que eu tivesse o máximo possível de tempo e oportunidade para investigar os meus próprios interesses, genuinamente, antes de acabar sendo engolida pelo mercado da arte e as suas demandas. Com isso, eu desenvolvi trabalhos que, inevitavelmente ou intencionalmente são causas e consequências uns dos outros mas, conscientemente, nem sempre seguiram uma "regra visual".
O convite para a individual, da forma que me foi feito, caiu como uma luva e foi muito prazeroso, pois tive muita liberdade para pensar e produzir, não apenas quais pinturas e como eu as instalaria naquele espaço, como o que o espaço (que já tinha relação com a exposição, pois havia sido um ambiente doméstico e manteve algumas dessas características) precisaria para recebê-las, por exemplo, as "pinturas espaciais", as listras verde e branca do chão e a sala preta brilhante.
Mas, claro, nem sempre é possível produzir com essa dualidade dada, então, inclusive é algo que venho pensando bastante, em como driblar, produtivamente, mesmo que em parte, essa minha "mania". Algumas das estratégias que eu já usei para o drible, de certa forma é indicar o contexto espacial da pintura através do título do trabalho ou desenvolver o "micro espaço" que pode conter a pintura, o fundo da própria pintura como esse espaço para "acomodar" uma outra pintura sobre este espaço pictórico ou as molduras e os formatos, as dimensões, os desenhos, as pinturas etc dessas molduras).
E qual tem sido sua pesquisa atual e que trabalhos você tem desenvolvido nos últimos tempos?
Agora, com as portas da exposição fechada, as portas da casa também se fecharam e os moradores subiram para os corredores, para os seus quartos e banheiros, onde os visitantes talvez sejam menos bem-vindos e a intimidade e segredos possam se aflorar…
Eu venho percebendo que, talvez, essa intimidade esteja vindo bastante florida. Eu acho que estou pintando flores, como se estivesse pintando retratos, mas eu ainda não sei racionalizar muito bem essas ideias.
Quais são suas perspectivas como artista? Como se vê daqui um tempo? Tem algum projeto que deseja realizar mais a longo prazo?
Espero poder participar de outras residências artísticas e me dar oportunidades de outros profundos e produtivos mergulhos. E que eu continue conseguindo produzir trabalhos que, pelo menos a mim, deem frio na barriga, principalmente, no momento do fazer.
No futuro, me vejo pintando, com muitos projetos em desenvolvimento, feliz e satisfeita com o caminho que fiz e o presente que estarei vivendo. Futuramente, por questões de viabilidade, gostaria de poder fazer a curadoria de uma exposição, provavelmente de pintura, dada a minha proximidade com a linguagem, com artistas mulheres que eu admiro, mas que não conseguiram visibilidade.
Que mulheres (artistas, escritoras, familiares e figuras públicas) foram/são influências e fonte de inspiração?
Praticamente todas as mulheres que conseguiram e conseguem se manter vivas e funcionais me influenciam e me inspiram de alguma forma, direta ou indiretamente. A cada ano que passa eu entendo melhor e, muitas vezes, sinto na pele o que aconteceu e o que acontece com a gente há anos e me dou conta de que já é admirável quem está conseguindo acordar, produzir, ser feliz e dormir.
Mas, para citar algumas em particular, eu diria que a presença feminina na minha casa sempre foi muito mais forte do que a masculina, então a minha avó, por parte de mãe, que pintava como um hobby, me incentivava a pintar e me inspirava como um todo, suas escolhas estéticas, desde a forma como se vestia, seu jeito celebrativo, até a decoração da sua casa. Minha mãe, que é o meu exemplo de força, trabalhadora, resiliente, ao mesmo tempo que também é o meu exemplo de equilíbrio, bom humor, traquejo social e apreciadora da vida, de estar viva.
E, fora do âmbito familiar, me vieram dois nomes: Clarice Lispector, pois quando li Água Viva (1973), me identifiquei, modestamente, com a forma e o desenrolar do seu pensamento, talvez porque a narradora quisesse expressar em palavras, justamente, o que ela sentia enquanto pintava e fiquei admirada com a sua coragem e liberdade, em uma época como aquela. E Paul B. Preciado, hoje homem trans, quando escreveu Manifesto Contrassexual (2000), para mim, o melhor livro que li até hoje, era Beatriz Preciado.
O que você faz para se motivar em períodos de baixa/desânimo/bloqueio criativo?
Na verdade, eu sempre tive a pintura como o meu principal animador e desbloqueador da vida num geral, então períodos de baixa, seja ela criativa ou pessoal, acabam tendo que ser animados com a endorfina e a serotonina da própria pintura, do café e do açúcar do cappuccino, do exercício físico e das pequenas conquistas; com a terapia e com o "um dia após o outro".
Quais foram os maiores desafios enfrentados na sua trajetória até agora?
Eu acho que foi o meu processo de amadurecimento, de forma geral, mas que influencia diretamente na minha trajetória como artista. Eu sempre fui muito dedicada e obstinada e, na minha infância e adolescência foi suficiente para que eu alcançasse muitos dos objetivos e conquistas, relativos e proporcionais aos contextos destas épocas.
Como você enxerga o papel da sua atuação como mulher artista no cenário artístico atual?
É ainda muito mais difícil ser artista para as mulheres. Então, o nosso manifesto para esta primeira mudança de base é continuar trabalhando, como artista e, também, trabalhar, intencionalmente, esse desequilíbrio social, cultural, artístico, todos os dias, desde a hora em que se está ouvindo notícias, quando conversa com amigues, quando posta nas mídias sociais, até as suas escolhas e ações mais complexas. E acho que isso vai ter que ser para sempre, como tomar água, porque o poço é muito muito fundo.
Quais foram os impactos e desdobramentos da pandemia para você nos âmbitos profissional e emocional?
Apesar da tragédia que foi pelo mundo, eu tive o privilégio de conseguir manter a minha casa e o ateliê. E o distanciamento e o confinamento, de certa forma, acabaram me ajudando, pois eu descansei dos eventos sociais e ainda consegui me concentrar e produzir a individual, que foi uma das primeiras exposições abertas, após a liberação do convívio social com máscara.
E como foi e está sendo esse processo de retomada para você?
Está sendo lento. Eu não fiquei nem gripada nesses dois anos e pouco, de tão precavida. E eu me acostumei bem, então estou voltando sem desespero. Os editais físicos reabriram, então voltei a escrever projetos e me inscrever. Acho que seria um ótimo momento para novas exposições e residências. E, finalmente, voltei a ir em aberturas e encontrar os amigos com muito mais frequência.
Qual o seu entendimento sobre a necessidade e importância de se ter iniciativas voltadas exclusivamente às mulheres e outros grupos minoritários?
É imprescindível, já que existe essa enorme falha no sistema. E o benefício é geral. Diretamente, para nós mesmas, para as nossas conquistas, respeito, estabilidade financeira e emocional, desenvolvimento intelectual e, consequentemente, para toda a sociedade que, entre outros, terá a oportunidade de continuar a ser construída (e não destruída), de forma mais justa e produtiva.