Entrevista com as fundadoras da Revista Dose
Conheci a revista Dose através da internet, quando pesquisava sobre publicações de arte. É sempre estimulante e inspirador se deparar com projetos que nos mostram novos caminhos e possibilidades de ser no universo da arte. Com uma proposta simples, cuidadosa e inovadora, a Dose é uma revista semestral que, a cada edição, apresenta o trabalho de 12 artistas, selecionados a partir de uma chamada aberta online e que desenvolvem um trabalho inédito para as versões física e digital da publicação.
Criada em 2018, por Maria Miguel Von Hafe, Mariana Rebola e Margarida Oliveira, no Porto, em Portugal, a revista já está em sua oitava edição e conta com lançamentos e exposições físicas além de seus desdobramentos digitais, como o podcast Fala. Na entrevista abaixo, as fundadoras contam sobre as motivações que as levaram a criar a Dose, suas trajetórias profissionais, suas principais referências no meio artístico e sobre os processos de desenvolvimento da revista.
A primeira edição da Dose foi lançada em 2018, certo? Qual foi a motivação de vocês para a criação da revista? E como começaram o projeto?
Sim, o primeiro número da Dose foi lançado em Setembro de 2018, na Galeria do Sol, no Porto. A motivação principal foi o desejo de querer mostrar o trabalho dos nossos colegas e amigos. Acreditávamos muito no trabalho que estava a ser feito em Portugal naquele momento e queríamos mostrá-lo ao público. Isto a par de uma crescente percepção de que o mundo da arte em Portugal é impermeável a novas vozes - claro que isto é sintoma da sua pequena dimensão mas pensamos também que é fruto de uma cultura portuguesa do não valorizar aquilo que é feito em Portugal (uma espécie de complexo de inferioridade).
Tudo se resumia a um desejo de ter um espaço de galeria, mas faltavam fundos e acesso a espaços disponíveis. Por isso chegamos à conclusão de que conseguiríamos produzir uma publicação. O mundo editorial era algo que todas nós também tínhamos muita curiosidade em experimentar, por isso foi uma solução que nos pareceu sedutora a vários níveis, inclusive o financeiro.
Mal tivemos a ideia e definimos os contornos do projeto começámos a contactar as pessoas que queríamos que participassem e passado um ano surgiu a Dose 01.
Como vocês se conheceram? Vocês podem contar um pouco sobre vocês? Qual o background e formação acadêmica de cada uma?
Nós (Margarida, Maria, e Mariana) conhecemo-nos na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto no início dos nossos percursos acadêmicos. Nos primeiros 2 anos da Dose havia também uma quarta pessoa, a Cristiana Oliveira - que vinha da área de Ciências de Comunicação e que nos ajudou muito a iniciar o projeto.
Margarida: Comecei por estudar Design Gráfico na Escola Secundária Artística de Soares dos Reis, um curso especializado integrado no contexto do ensino secundário, sendo que aos 17 anos segui para a Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto onde me licenciei em Artes Plásticas – Pintura, durante a qual passei um ano na Accademia di Belle Arti di Brera em Milão no âmbito do programa de mobilidade Erasmus. Após terminar a Licenciatura, realizei um Mestrado em Crítica, Curadoria e Teorias da Arte pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa e estou neste momento a tirar o Doutoramento em Filosofia na Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Católica Portuguesa. Em 2021 comecei também a escrever para a revista de arte Umbigo com análises descritivas de exposições a nível nacional, e no verão desse mesmo ano realizei um estágio na Lighthouse Publishing, editora detentora das revistas Vogue e GQ Portugal para as quais contribui com diversos artigos.
Maria: Licenciei-me em Artes Plásticas - Multimédia, pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, em 2017. Em 2016 fiz Erasmus na HfBK em Dresden, na Alemanha, no estúdio da Monika Brandmeier. Iniciei mais tarde um mestrado em cinema documental mas rapidamente percebi que estava no sítio errado, e que deveria continuar o meu percurso nas artes plásticas. Então em 2020 inscrevi-me no mestrado em Artes Plásticas na Escola Superior de Arte e Design das Caldas da Rainha, e que estou agora a terminar.
Mariana: Concluí um mestrado em Artes audiovisuais através da Luca School of Arts de Gent, após uma licenciatura em Pintura na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto com um semestre de Erasmus na Academia de Belas Artes de Praga. Encontro-me a concluir um segundo mestrado, desta vez em ciências sociais, em 'Arts, Culture and Society' na Erasmus University em Roterdão.
Atualmente vocês atuam profissionalmente em outros projetos ou se dedicam integralmente à revista?
Sendo que a revista é um projeto independente e com financiamento e retorno limitado, não permite que nos dediquemos inteiramente ao mesmo. Portanto, a nível individual, cada uma de nós complementa o sua atividade académica e profissional de distintas formas:
Margarida: Como referi anteriormente, estou neste momento a tirar o Doutoramento em Filosofia pelo que o estudo teórico do pensamento cultural se tem vindo a revelar cada vez mais importante para a minha própria prática criativa. Neste sentido, todos os projetos nos quais me envolvo se complementam, penso-os como um todo.
Maria: Neste momento, para além da Dose, trabalho como produtora e curadora no Ócio, uma 'família artística' com espaço de exposições no Porto; e faço trabalho de comunicação e programação na Vicara, uma agência criativa focada em design de produto, nas Caldas da Rainha.
Mariana: Neste momento encontro-me focada em terminar a tese na faculdade holandesa, e financeiramente dependente de vendas profissionais do meu trabalho artístico autoral ou poupanças.
Como fazem a curadoria e pesquisas dos artistas a integrarem cada edição?
Neste momento, e desde o 5º numero da revista que selecionamos os artistas a partir de uma Open Call, para o qual recebemos submissões nacionais e internacionais. No início de vida do projeto não fazia sentido que assim fosse porque a Dose nasceu de facto da vontade de querer mostrar aquilo que já conhecíamos. Depois, com o tempo e em cada edição fomos percebendo que nos estávamos a sentir limitadas pelo nosso próprio conhecimento da cena artística e percebemos que abrir uma open call seria a melhor forma de nos fazer chegar artistas que nós não conhecíamos. Depois é um método muito analítico, em que cada uma olha para as submissões e depois cruzamos as opções. A maior parte das vezes acabamos por querer os mesmos artistas na revista, provavelmente porque já trabalhamos juntas há algum tempo e temos vindo a afinar da mesma forma aquilo que gostamos e consideramos bom trabalho.
Os artistas escolhidos são convidados a criar uma obra para a revista impressa e outra para edição digital. Como vocês vêem as particularidades de cada meio? Algum deles tem alguma vantagem sobre o outro?
Não achamos que haja vantagem de um sobre o outro. A revista tem a particularidade de ser material, de ser um objeto, de ter textura e cheiro. Oferece também a possibilidade de criar uma espécie de narrativa, visto que há 6 páginas, e os 'leitores' são obrigados a vê-las de uma certa ordem. Enfim, tudo isto tem a ver com o objecto livro ou revista e penso que qualquer pessoa poderá entender que é impossível reproduzir essa sensação noutro formato. Por outro lado, nós convidamos os artistas a tirarem máximo proveito da plataforma online porque também oferece possibilidades que ultrapassam a matéria física, como a possibilidade de mostrar imagem em movimento, som, ou dar ao público a opção de fazer downloads, etc. São ambos parte do universo da Dose e quando falamos com os artistas para cada edição, dizemos que o ideal é que haja uma comunicação ou relação entre os dois formatos, sem que eles sejam apenas traduções um do outro. Isto é, pedimos que tirem máximo partido das características de cada um.
Teve alguma edição ou projeto da Dose que tenha sido mais marcante? Podem contar um pouco sobre?
O primeiro número da Dose 01 foi muito marcante por várias razões. Em primeiro, pelo voto de confiança de todos os artistas que participaram nesse número, que estiveram durante um ano (excepcionalmente, porque a partir daí a revista seria lançada de 6 em 6 meses) a conversar connosco e a perceber como a coisa se iria materializar. Por outro lado, tivemos um enorme feedback positivo, muitas palavras de apreciação da revista e do projecto. Fizemos um lançamento no Porto e outro em Lisboa, no espaço do Las Palmas, e em ambos os momentos fomos muito bem recebidas e toda a gente nos encorajou a continuarmos. Já passaram quase 4 anos e tivemos excelentes experiências desde então, mas esse nascimento da Dose será para sempre muito especial para nós.
Vocês participam de alguma forma dos processos de desenvolvimento dos trabalhos dos artistas ou vocês recebem os já prontos para cada edição?
Não participamos, no sentido em que o desenvolvimento dos trabalhos é completamente independente e livre; mas mantemos reuniões para acompanhar o processo de criação, e quando nos é possível visitamos os ateliers dos artistas e conseguimos conhecer um pouco mais das motivações para concretizarem o seu trabalho. É uma das componentes mais importantes da Dose para nós porque é um momento em que conseguimos estabelecer uma relação e é muito inspirador poder conversar e trabalhar com tantos artistas. É mesmo um privilégio! Mas, de fato e relativamente aos trabalhos que recebemos para cada edição, tentamos não interferir no processo criativo de cada um.
Como é a cena artística em Portugal atualmente? Vocês acham que as mulheres têm conquistado um espaço mais equânime nesse cenário (seja com representação feminina em galerias e museus, seja atuando no mercado ou nas instituições de arte)? E como vocês enxergam a Dose nesse contexto?
A nossa experiência é a de que tem sido possível conquistar o nosso espaço no cenário artístico português. Não é algo fácil, no sentido em que requer uma grande mobilidade nacional e disponibilidade para encarar projetos de caráter muito distinto. Porém, através de parcerias atenciosas de projetos independentes semelhantes ao nosso ou galerias atentas ao panorama emergente, tem sido possível continuarmos. Vemos também, dentro do setor artístico, bastantes mulheres com uma prática sustentável e emancipada dos antigos paradigmas sexistas da arte. Contudo, apercebemo-nos que ainda há uma caminho a percorrer para uma valorização equalitária - algo que abordamos num episódio do nosso sétimo episódio do podcast 'Fala', em conversa com a Filipa Nunes e Marina Reis sob o tema geral 'Fazer por Prazer'.
Quais são as principais referências de vocês? Podem ser profissionais, mulheres artistas e até familiares que possam ter tido influência na trajetória de vocês.
A nível de projeto conjunto, não temos propriamente uma referência conjunta, mas um culminar dos valores que emergem das nossas referências individuais.
Maria: Não sei bem por onde começar! Interessa-me pensar no cruzamento entre a arte e a vida, e as minhas referências são de pessoas que estabeleceram um corpo de trabalho muito íntimo ou que colocaram muito da sua vida interior na sua obra. Entre elas estão Bruce Nauman, Joan Jonas, Lourdes Castro, Ana Hatherly, Rainer Maria Rilke, Alberto Caeiro, Hilma af Klint, Allan Kaprow, etc. A minha professora de licenciatura, a artista Cristina Mateus, foi muito importante no meu percurso e ensinou-me que não há forma de errar na prática artística, desde que haja honestidade e disponibilidade para fazer esse trabalho.
Margarida: Parece-me que esta é uma pergunta que poderia responder sempre de forma diferente, dependendo da altura em que a penso. Tenho tendência para procurar a autenticidade, sendo que posso referir aqui a Hannah Arendt enquanto uma referência, embora não me dedique à escrita de textos políticos, revejo-me no compromisso de Hannah com a verdade. Posso afirmar com alguma certeza que a atitude me influencia mais do que o resultado final, sendo que na procura pela minha própria autenticidade reconheço uma necessidade de dedicação ao pensamento crítico e procuro também influências com essa dedicação, sejam elas mais eruditas ou pop, atrai-me a liberdade de pensamento e, consequentemente, a liberdade de comportamento.
Mariana: diria que o meu foco teórico e artistico é na emancipação para lá de estereótipos sociais, especificamente impositivos quanto a questões de género ou modelação do eu-físico primordial. Nesse sentido e de forma abrangente, artistas como Helena Almeida, Cassi Namoda, Louise Bourgeois, Paula Rego, Lexie Smyth, Nancy Spero, ou Francesca Woodman são referências que respeito e a que recorro; sendo que o mais me inspira, um pouco como à Margarida, é uma conduta para com a vida, mais do que o que é objetivamente produzido nas suas práticas. Além disso, sinto uma grande ligação à herança açoreana do meu lado materno, e à valorização da terra enquanto meio de crescimento e sustento do lado paterno.
Que projetos/ações estão por vir em 2022?
Tivemos uma exposição muito especial em parceria com o Observatorio Paralaxe agora em Junho, que foi uma excelente e muito apreciada oportunidade de fazer curadoria de trabalho de arquivo e processual de uma forma que nos é nova. Teremos também um lançamento-exposição que marcará o novo número da dose em Outubro - com detalhes específicos a anunciar em breve - e uma exposição a inaugurar em Setembro no Espaço Pontes do Fundão, com obras site-specific de dois artistas publicados nos nossos números anteriores.