horizontalidade e resistência – só o tempo irá mostrar o impacto da documenta fifteen
Kassel é uma cidade um tanto insípida. Com mais de 90% da sua arquitetura original destruída em bombardeios por parte dos Aliados durante a Grande Segunda Guerra, o prédios que vieram após esse período são de beleza questionável; a culinária é, digamos, insossa (até para padrões alemães); e não há muito mais a se fazer por lá além de peregrinar a cada 5 anos para ver a maior mostra de arte do mundo.
De primeira, esse fato já soa um tanto dissonante: como uma cidade sem a menor relevância internacional pode ser palco da maior exposição de arte da atualidade? A resposta reside em Arnold Bode, arquiteto, curador, e grande homem de ideias, que envisionou a documenta.
O internacionalismo típico da documenta – essência que ainda é muito presente – contrasta diretamente com o nacionalismo típico do século XX, no formato “olimpíadas”, através de pavilhões nacionais, da Bienal de Veneza.
Bode, um alemão de Kassel, que vendo sua cidade destruída em 1946 – incluindo o museu Fridericianum (uma das instituições culturais públicas mais antigas do mundo, datada de 1779), foi tomado pelo idealismo do pós-guerra e, vendo a Alemanha isolada do contexto europeu, criou a documenta em 1955 como uma forma de aproximar a cena artística internacional (vale ressaltar que arte internacional naquele contexto significava arte europeia, principalmente francesa).
Ao longo dos anos, a mostra foi ganhando notoriedade. Em sua segunda edição, em 1959, Rudolf Zwirner (pai do grande galerista David Zwirner) foi o secretário principal, trabalhando diretamente com Bode (recomendo sua autobiografia, Give me the Now para um mergulho profundo na cena alemã do pós guerra). Okwui Enwezor foi o primeiro não-europeu a ser responsável pela curadoria da mostra, em 2002 – feito repetido apenas 20 anos depois por Carolyn Christov-Bakargiev, curadora da documenta 13, que nasceu nos EUA mas detém nacionalidade italiana.
A documenta fifteen abriu oficialmente ao público no último dia 19 de Junho. Dessa vez, a mostra trouxe uma proposta muito diferente das edições anteriores: o foco no processo em vez de objetos.
Ruangrupa é o “coletivo” responsável por esta edição. As aspas são necessárias porque o coletivo, neste contexto, não é bem o que se entende por um coletivo de arte: são jornalistas, arquitetos, acadêmicos e ecologistas. Não se sabe muito bem quantos integrantes o grupo possui além dos 10 membros principais; não se juntam para montar exposições da maneira convencional; não confeccionam objetos de arte. Nem sequer experiências fugazes, como performances, são criadas por eles. De acordo com NY times, a única vez que o grupo expôs em uma galeria foi há duas décadas.
O mote principal é a colaboração coletiva, onde qualquer tipo de autoria individual fica em segundo plano, e decisões processuais como de que cor pintar as paredes, qual tipografia utilizar ou qual texto imprimir, acabam por se tornar o trabalho em si: “Até abrir uma cafeteria pode ser um trabalho de arte”, afirma Ade Darwaman, um dos fundadores do coletivo.
Não é possível “medir” essa documenta. Quantos artistas estão expondo? 67 nomes foram convidados pelo ruangrupa, dentre esses, alguns são coletivos, que incluem artistas que convidam outros artistas, e por aí vai. É como se o ruangrupa fosse o tronco de uma árvore: os galhos são os coletivos, os artistas são as folhas, e a arte em si, as flores e frutos, que geram sementes (a arte relacional, os projetos conduzidos) que fazem nascer outras árvores que, por sua vez, gera um padrão exponencial de alcance.
Tive a sorte de encontrar Graziella Kunsch, a única brasileira presente na mostra, no espaço dedicado a seu projeto. Numa das grandes alas do Fridericianum, a artista transformou o museu num day care para bebês de 0 a 3 anos. Quem visita o espaço fora do horário proposto para o day care (de 10 da manhã até as 5 da tarde) e o encontra vazio, com mobiliário característico, uma cozinha equipada, uma mesa com cadeiras e uma pequena biblioteca específica sobre maternidade e algumas lindas fotos, não entende exatamente do que se trata, como foi o meu caso.
Grazi estava com Manu, sua filha e protagonista do vídeo que se situa logo na entrada do espaço. Foram anos e anos acompanhando o processo de crescimento e individualização de Manu com a câmera: Kunsch cria Manu através da abordagem pedagógica Pikler, que é o eixo principal de todo projeto.
Grazi me conta que já conhecia a abordagem Pikler desde antes do nascimento de Manu, mas quando foi atravessada pela experiência da maternidade, seus desafios e descobertas, dedicou-se a entender e colocar em prática o método desenvolvido pela pediatra húngara na criação de sua filha.
Todo mobiliário foi planejado e desenvolvido por Graziella, que é adaptado para que os bebês circulem livremente no espaço: sem quinas pontiagudas, pontas arredondadas, pequenos degraus para mobilidade, etc.
A principal linha de estudo de Pikler é a autonomia dos bebês, percebidos como seres datados de individualidade própria e vontade. A ideia é que durante as atividades de troca essenciais entre adultos e bebês, como trocar a fralda, dar banho, etc, o adulto esteja 100% presente e, antes de tocar no corpo da criança, a comunique gentilmente dos movimentos que vai executar. E nos momentos chamados de “brincadeira livre” os bebês devem estar total e completamente livres, sem nenhum tipo de intervenção. A autonomia que a independência gera é gritante, e são esses momentos capturados pela fotógrafa Marian Reismann.
De acordo com Kunsch, rapidamente os bebês internalizam a linguagem, e depois de algum tempo já executam movimentos impressionantes, impensáveis no contexto do desenvolvimento comumente indicado pela pediatria ocidental.
Escutar Kunsch é adentrar um universo de linguagem totalmente inexplorado até então pelo mundo da arte – seu projeto não é o único voltado para as crianças: RURUKIDS “é um espaço de portas abertas para que todas as crianças possam desfrutar da área de jogos, projetos especiais, sala da biblioteca e exibições durante o horário de abertura das 10h às 20h.”
Poderia escrever páginas inteiras sobre cada um dos projetos da documenta e ainda assim não daria conta de todo escopo de proposições. A questão principal, é exatamente essa: abrir mão do controle de ver e saber. A horizontalidade da proposta confronta a ideia ocidental de insularidade da arte. O tamanho da disrupção é diretamente proporcional ao tamanho da resistência ao que foi feito (vide todas as polêmicas e censuras – uma espiral inteira de acontecimentos e informações que não vale a pena adentrar aqui), e acredito que ainda vai levar algum tempo para entendermos de fato o tamanho do impacto e influência que essa edição vai causar no mundo da arte.
O fato é que, agora mais do que nunca, é visível que instituições criadas nos séculos passados não se adaptaram ao zeitgeist atual – existe uma disparidade entre os curadores ou coletivos chamados para assinar cada projeto, e as instituições em si. O tokenismo, que até então não reiterou-se pelo argumento de que “pelo menos estamos ocupando espaços”, não serve mais, pois o processo de descolonização já chegou na esfera estrutural das organizações: fica muito clara a separação entre as propostas, inovadoras, e as instituições, conservadoras e arcaicas.
O coletivo “Party Office”, de Nova Dheli, por exemplo, em um post de Instagram (agora deletado), demandou que o escritório da documenta liberasse os dados de gênero e raça de seus funcionários, numa aparente tentativa de deslegitimação da instituição, após a decisão de cobrir de preto e retirar o painel “People’s Justice,” 2002, do coletivo Indonesiano Taring Padi, que continha imagéticos depreciativos da cultura judaica.
Já a última polêmica aconteceu com a artista Hito Steyrl, que resolveu tirar seu trabalho do Museu de História Natural de Kassel (um dos melhores trabalhos da edição, em minha opinião). Dentre os motivos, citou a incapacidade de criar um espaço onde as questões divisórias poderiam ser discutidas e as "condições de trabalho inseguras e mal remuneradas" de alguns funcionários. E pelo visto, não vai ser a última.
De fato, vai ser muito interessante acompanhar os desdobramentos dessas iniciativas daqui em diante. Atingimos um ponto no tempo em que a forma de se pensar e fazer arte já é totalmente distinta da pensada por Bode anos atrás. Resta saber, do que é novo, o que fica e o que não fica: e isso apenas o tempo irá dizer.